Violência disfarçada de medida disciplinar
"Vá fazer seu dever de casa", ordena a mãe ao filho. "Não vou", responde a criança em tom de pirraça. "Vai sim, e agora, senão vou lhe dar umas palmadas!". A criança permanece quieta sem obedecer à ordem. A mãe pergunta: "já começou a fazer o dever?". Silêncio. De repente, a mãe entra no quarto com uma expressão de raiva estampada no rosto, pega o filho bruscamente e aplica-lhe vários tapas na bunda. Sem poder argumentar, o filho, aos soluços, começa a fazer o dever de casa com raiva da mãe, que deixa o quarto certa de ter agido corretamente. Não é difícil achar pessoas que pensam que palmadas e puxões de orelha são necessários na educação dos filhos. Em todas as classes sociais brasileiras é possível encontrar pais que defendam a chamada psicologia da palmada. Pensam que essa é a uma boa maneira de formar o caráter das crianças e impor limites. Será que em pleno século XXI o castigo corporal é realmente necessário para educar e formar seres humanos ou esse expediente na verdade revela a falta de paciência que os adultos costumam ter no complexo ofício de criar seus filhos? "Quando um adulto bate em uma criança, ele impõe uma relação de poder", diz a deputada Maria do Rosário (PT/RS), autora do Projeto de Lei (PL) 2654 de 2003, que estabelece o direito de a criança e o adolescente a não serem submetidos a qualquer forma de punição corporal, ainda que moderada. A proposta da deputada foi apelidada de "Projeto da Palmada". O PL prevê que o poder público, por meio das escolas, desenvolva campanhas educativas para orientar os pais a substituírem o castigo físico pelo diálogo ou por outra forma de sanção. Por exemplo, afastar a criança de uma brincadeira e fazê-la refletir sobre o mau comportamento que teve. "A melhor forma de educar não é bater é conversar", conclui a deputada que é pedagoga e especialista em violência contra crianças e adolescentes. É fato que nenhum adulto gosta de ser tratado a sopapos e humilhações. A Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas considera que "a dignidade é inerente a todos os membros da família e que seus direitos são iguais e inalienáveis para fundamentar a liberdade, a justiça e a paz no mundo". A criança e o adolescente não são exceções aos princípios contidos na Declaração dos Direitos Humanos e, portanto, não devem ser alvo da violência dos adultos. Mesmo moderadamente os castigos corporais podem acabar descambando para o espancamento. Muitas vezes, pais e mães estressados com as atribulações do dia-a-dia perdem o controle no debate com os filhos e acabam excedendo na força do tapa. O adulto é muito mais forte que a criança e essa força pode dobrar se ele estiver com raiva. Há casos de pais que aplicam palmadas muito fortes no bumbum da criança que chegam a atingir o nervo ciático, causando dores fortes nas pernas. Outro tipo de castigo não muito raro é quando o pai ou a mãe, num rompante de raiva, sacode a criança. Tal punição pode causar lesões permanentes no pescoço e até matar, mesmo que o agressor não tenha a intenção. "A violência contra crianças e adolescentes na família pode freqüentemente ocorrer no contexto de medidas disciplinares e assumir a forma de castigo físico, cruel e humilhante", alerta o especialista Paulo Sérgio Pinheiro no Relatório Global sobre a Violência contra Crianças no Mundo. O relatório, apresentado na Assembléia das Nações Unidas no dia 11 de outubro, é o primeiro estudo abrangente desenvolvido sobre todas as formas de violência contra crianças. Para a produção do documento, o especialista utilizou dados da Organização Mundial de Saúde e ouviu crianças de várias partes do mundo que passaram por situações de violência. Ciclo da violência Vivemos numa sociedade em que o ciclo da violência começa na infância. Bater nos filhos é um hábito culturalmente aceito entre os brasileiros, mas de acordo com a Drª Renata Waksman, pediatra coordenadora do Núcleo de Estudos da Violência contra Crianças e Adolescentes da Sociedade de Pediatria de São Paulo, esse comportamento contribui para o recrudescimento de todas as formas violência na sociedade em geral. "A violência começa em casa. Aquela criança que é vítima da força dos pais tem maior possibilidade de replicar isso na vida adulta", diz a pediatra. "Os castigos físicos representam violação do direito à vida, à integridade física e psicológica e ao pleno desenvolvimento da criança. Trata-se de uma prática obsoleta que vêm sendo substituída até no adestramento de animais", classifica Eleonora Ramos, coordenadora do projeto Proteger e responsável pela Secretaria Executiva da Rede pela Erradicação do Castigo Físico e Humilhante de Crianças e Adolescentes. O Centro Regional de Atenção aos Maus Tratos na Infância (CRAMI) é uma ONG que desenvolve um trabalho de orientação dos pais na educação dos filhos. A entidade realiza cursos de capacitação, seminários, fóruns, palestras e campanhas educativas. O trabalho é direcionado para todos os segmentos que lidam diretamente com crianças e adolescentes. O trabalho desenvolvido pelo CRAMI visa orientar os pais a substituírem os castigos corporais por punições alternativas. Para isso, as famílias atendidas pela ONG recebem apoio e acompanhamento de assistentes sociais e psicólogos para perceber e repensar suas atitudes, em relação aos cuidados e educação dos seus filhos. "Por mais leve que sejam, esses tapinhas não deixam de ser uma forma de violência. Esses castigos não têm o caráter educativo", defende a coordenadora técnica do CRAMI, Lígia Caravieire.
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