Uma visão da missão da Escola
Trazendo desafios, perplexidades, dúvidas, as transformações do mundo atual estão legando uma mensagem claríssima, nada nova e muito significativa para pais e educadores: precisamos ter consciência de que pessoas estamos formando. Temos problemas com a disciplina, com a rapidez das transformações dos costumes, com o mercado de trabalho? Para iniciarmos as buscas pelas respostas, são necessários dois movimentos: um olhar para fora e um olhar para dentro. Se olharmos pela nossa janela, veremos um mundo novo em formação, fundado basicamente sobre a produção constante e a transmissão veloz do conhecimento. Veremos a passagem da sociedade industrial para a sociedade da informação - movida pelo conhecimento e pela tecnologia. Há clara tendência de substituição do trabalho físico do homem por máquinas, como computadores e robôs, nas tarefas repetitivas e rotinas de cálculo. Nesse ponto, começam nossos desafios como educadores. A sociedade atual necessita de pessoas: versáteis e flexíveis; com boa capacidade de comunicação; que identifiquem e resolvam problemas; que saibam trabalhar em equipe e negociar; que pensem de forma global e sejam capazes de selecionar e buscar informações em diversas fontes; que dominem as tecnologias de informação (como a Internet) e, pelo menos, o inglês. Basta? Não. Por trás de tudo isso deve haver uma sólida formação acadêmica. A Escola, portanto, mudou seu paradigma de ensino para aprendizagem. Hoje, ela precisa formar pessoas que saibam estudar e aprender o tempo todo. Caso contrário, esses cidadãos correrão o risco de serem atropelados pelo novo e de perderem o bonde deste mundo competitivo no qual estamos mergulhados. Isso leva ao imperativo da educação continuada. Não há sistema educacional capaz de ensinar a uma pessoa até seus 25 anos tudo o que terá de conhecer durante sua vida profissional. Mesmo porque durante os anos escolares grandes massas de novos conhecimentos serão produzidas. Assim, a formação contínua fará, cada vez mais, parte da vida profissional. A função da educação básica não é apenas transmitir o conhecimento arbitrado por um grupo dominante, preocupação quase exclusiva do ensino tradicional, mas, sim, desenvolver habilidades cognitivas em seus alunos, capacitando-os a ler, interpretar, explicar, comparar, analisar, justificar, opinar, abstrair, concluir - enfim a pensar. A Escola precisa instrumentalizar os alunos, ou seja, dar-lhes as chaves de decifração do conhecimento. Isto é, em vez de decorar todas as capitais dos diferentes países, o aluno deve aprender a consultar um atlas - disponível em papel, CD-ROM ou mesmo na Internet. Da mesma forma, precisa desenvolver, em Matemática, mais do que a habilidade operacional: precisa aprender a equacionar os problemas. A função da Escola não termina aqui. Tem ainda o papel de trabalhar o conhecimento de forma significativa para o aluno. Se as crianças e os jovens não forem capazes de relacionar o novo conhecimento com o seu acervo anterior, tenderão a ser um depósito de informações. Daí para o desinteresse é um passo. Não há como atingir objetivos tão profundos sem um compromisso abertamente estabelecido com o aluno, o que deverá gerar disciplina de trabalho, clima adequado à produção intelectual e à convivência respeitosa. O segundo olhar: a questão dos valores morais O leitor atento deve estar percebendo. Para entendermos a necessidade de novas posturas na educação, é momento do segundo olhar: para dentro. A etapa escolar que vai da Educação Infantil ao Ensino Médio não é somente relevante no desenvolvimento cognitivo. Por trabalhar com indivíduos dos 2 aos 18 anos, essa etapa é fundamental na determinação dos valores morais e sociais. Um tema bastante atual é a preocupação de pais e professores com a disciplina. Para muitos, hoje as crianças seriam indisciplinadas, sem noção de limites, que os pais não impõem e a escola não ensina. Mas o que chamamos de disciplina? Poderíamos dizer, de modo simplista, que uma criança disciplinada é aquela que cumpre todas as normas estabelecidas por seus pais e professores, além de conviver pacificamente com seus colegas. Entretanto, por trás dessa criança bem-comportada pode estar somente o medo do castigo, o conformismo. Será disciplinada a pessoa que age apenas para evitar castigos ou que ache mais "lucrativo" não enfrentar professores e orientadores? Precisamos estar conscientes de que nem toda indisciplina é um mal em si. Muitas vezes, torna-se um necessário passo de crescimento a oposição a regras injustas. Para que uma pessoa seja disciplinada, mas de forma autônoma, há um longo caminho a percorrer, onde as intervenções dos pais e da escola são cruciais. Sabemos que, nos seus primeiros anos, a criança obedece aos adultos de maneira totalmente heterônoma, isto é, apenas para obter recompensas ou evitar punições. (É também possível que adultos tenham a vida toda uma moral heterônoma - o que não é, claro, o desejado.) Nesse caso, diríamos que ela é obediente, mas não disciplinada. O desenvolvimento da disciplina corresponde ao surgimento de um controle interno, uma obediência às regras que não dependa mais exclusivamente do controle dos pais ou de outras pessoas. Isso implica a assimilação racional das regras, o que faz surgir a reciprocidade, o respeito mútuo - que vem a ser a capacidade de respeitar o outro e por ele ser respeitado. Assim, é essencial que se coloquem regras claras de conduta para que as pessoas tenham a oportunidade de compreendê-las (percebendo a utilidade desses parâmetros para a convivência social) e se posicionem diante delas. Introjetadas lentamente, as regras são fundamentais para os valores morais da criança, o desenvolvimento da reciprocidade e da solidariedade. Além de conquistar a autonomia, o aluno vai alcançar também uma concepção de justiça em que os atos são julgados no contexto das circunstâncias em que são praticados. A criança e o jovem, na relação com os adultos, compreendem cada vez mais as normas a que estão sujeitos e as interiorizam. Nesse caminho percebem que as regras podem ser mudadas e continuarão a ser legítimas se renegociadas e aceitas pelo grupo. O respeito às regras, que na infância se dava por imposição dos adultos, passa a existir pela cooperação. No entanto, ainda nos primeiros anos da adolescência o sentimento de justiça é baseado na igualdade das conseqüências por transgressões às regras, independentemente das circunstâncias. Um mesmo ato indisciplinado acaba tendo a mesma conseqüência para alguém que agiu pela primeira vez e para o reincidente. Apenas com o desenvolvimento da capacidade cognitiva e com a experiência no grupo social é que o adolescente começará a ser capaz de julgar o certo e o errado, considerando as circunstâncias. Tudo isso para demonstrar que a formação de uma pessoa verdadeiramente disciplinada, moralmente autônoma, é um longo caminho, sedimentado com coerência, consistência e a intervenção sistemática dos adultos. O aluno e o filho que queremos É importante notar que a interiorização das normas não se dá somente pela intervenção oral (sermões), mas especialmente pela observação do comportamento de pais e professores (modelos). Portanto, para que nos tornemos capazes de disciplinar alguém, é bom antes observarmos criticamente os nossos valores e refletirmos sobre as conseqüências que eles podem ter para a vida em sociedade. Essa aprendizagem moral não vem apenas da escola. É profundamente influenciada pelos pais, pela família. É necessário que pensemos: que valores estão sendo mostrados para a criança? Essa escolha é fundamental para a pessoa que estamos formando. Na Móbile, queremos convictamente alunos que, com seus valores e atitudes, sejam capazes de: pensar sobre a conseqüência de seus atos para si e para a coletividade, controlando respostas impulsivas; conhecer suas capacidades e a do outro, sendo tolerantes com a diversidade e tendo uma auto-imagem positiva; defender seus direitos sem perder de vista o coletivo; ser solidários, mostrando apoio ao outro por ações ou palavras; ser críticos ao questionar a legitimidade e a funcionalidade das regras com argumentos consistentes; ser persistentes, não desistindo frente às dificuldades e sabendo adiar gratificações; perceber o que os outros querem e sentem; ser cooperativos, percebendo as necessidades do grupo, contribuindo para atingir o objetivo e tendo claro que a contribuição do outro é também fundamental; perceber que seu trabalho é fundamental não só para sua formação pessoal, mas como um compromisso social. Esse quadro de valores e atitudes nunca será completo, pois o viver do dia-a-dia da Escola e as transformações sociais levarão à necessidade de acrescentar novos valores. Precisamos pensar a disciplina como o desenvolvimento de recursos internos à pessoa, que envolvem valores. É um trabalho contínuo, de longa duração, cujos efeitos não são imediatos e que requer intervenção sistemática e consistente por parte dos adultos. A partir daí, temos imediatamente duas decorrências. A primeira é que toda a equipe da Escola - direção, coordenação, professores da Educação Infantil ao Ensino Médio e pessoal de apoio - cotidianamente reflita sobre os valores assumidos por ela. Precisamos estar "antenados" para comparar o ideal de estudante que temos de formar e aquele que de fato estamos formando. A segunda decorrência é que a Escola deve atuar em necessária e absoluta parceria com a família, na busca do objetivo final da educação: a preparação para o exercício da cidadania. Como diz o pesquisador Yves de La Taille, "para ser cidadão são necessários sólidos conhecimentos, memória, respeito pelo espaço público, um conjunto mínimo de normas de relações interpessoais e diálogo franco entre olhares éticos". Nota do Editor: Maria Helena Bresser é Doutora em Psicologia e Diretora Geral do Colégio Móbile em São Paulo.
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