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COLUNISTA
Nenê Velloso
15/06/2009 - 12h08
Construindo o passado III - 4
 
 
Arquivo Nenê Velloso 

Nesta situação, o proeiro é aquele que rema sentado no banco da frente e, aos berros, vai orientando o outro remador; o popeiro é aquele que rema sentado banco de traz (leme), é quem dá o rumo. O proeiro continua orientando: “À esquerda! À direita! Não deixa embocar! Pega a marola só de frente, rema, rema, força, força, não cochila no leme! Vem mais uma marola, vem outra! Pega só de frente, senão vai alagar.”

Isso aconteceu com a professora Dionísia, que nesse episódio, pela sua baixa estatura foi apelidada de corruíra; nessas circunstâncias ia sentada no fundo da canoa, para dar mais estabilidade. O proeiro ia orientando também a professora. Aos berros dizia:

- Corruíra! Vamos esgotar rápido a água da canoa senão ela vai ficar passarinheira (louca, sem estabilidade).

Durante oito anos a professora Dionísia fez esta travessia, e perdeu a conta de quantas vezes passou por episódios como este. Quando o mar encapelado atinge a proporção mostrada na foto, antes de chegar a esse ponto o canoeiro já estava parado em lugar seguro, pois não há a mínima possibilidade de prosseguir.

Para se esgotar a água da canoa usava-se uma cuia, feita da metade de uma cabaça, fruta não comestível, do tamanho de um melão, ou de madeira, ou ainda a metade da forma de lata que era e ainda é, embalagem do queijo do reino. Sendo que os três tipos de cuias serviam também como medida para vender farinha e outros cereais, especialmente para vender camarão na praia (uma cuia é equivalente a 1/2 litro).

E, devido à lentidão da canoa a remo e a grande distância a ser percorrida, se houvesse uma mudança repentina do tempo, não daria para chegar a um porto seguro. Por isso, os canoeiros que levavam a professora até a cidade eram escolhidos pelos mais velhos, com profundo conhecimento do tempo, principalmente quando não têm uma só nuvem no céu. Aí é que mora o perigo, porque quando o tempo já está ruim, todo mundo conhece, mas quando está bom, pode mudar repentinamente.

Poucos são os pescadores que têm essa sensibilidade, por isso eram escolhidos a dedo pelos mais velhos. Tinha que ser hábil canoeiro, com idade acima dos 25 anos, braços fortes para agüentar o tranco do mar e que já tivesse feito esta travessia mais de 10 vezes. Afinal, a segurança da professora sempre estava em primeiro lugar. O canoeiro que senta no banco da popa (leme), segue sempre calado, remando forte e compassadamente, sincronizado com o remador da proa, que segue preocupado, concentrado e atento a qualquer mudança na atmosfera, distingue pela mudança de temperatura da água, uma calmaria, um silêncio, ou quando resvala no rosto um sopro diferente daquela aragem sadia, que só ele conhece a diferença.

Mudanças também na cor do mar, permeando em tons verdes, azuis claros com manchas escuras, sem que haja uma só nuvem no céu, ausência das gaivotas, e o aparecimento de bandos das velozes andorinhas do reino de coleira branca, asas finas, corpo esguio, voando em formação, às vezes resvalando à ponta da asa na água, muito embora o céu esteja límpido, são sinais de que o tempo vai mudar e, rapidamente o mar já começa a encapelar-se.

O canoeiro sabe que o tempo ruim vai chegar, mais ou menos em uma hora, ou pouco mais, e o vento sul começa a assoprar agitando o mar, cresce o marulho, ondas dispararam batendo com fragor no despenhadeiro escarpado das ilhas e da costa, descendo e subindo em cascata, pelas rochas talhadas a pique, num vaivém incansável. Nessas condições, poderá trazer a tempestade mais temida pelos pescadores, o “Sudunga”. São rajadas de vento de todos os lados, o céu escurece, engrossado pelos colchões de nuvens espessas que descem com peso, misturam-se e chocam-se umas as outras, e um clarão enorme, rápido, risca o céu enegrecido, a centelha some deixando no ar, um lapso sombrio. Veja a foto: Simulação de um “Sudunga” em formação, mas pode também ser disperso pela ação do vento, e dar em nada, é difícil, mas acontece.

Aí despenca o temporal. Ondas espumejantes de mar encapelado rebentam nas praias. A chuva forte, rasteira e sem tréguas vem de todos os lados e a visibilidade é reduzida à zero. Sair dessa vivo... só pela Providência Divina, diziam os caiçaras. A segurança da professora estava sempre em primeiro lugar, não se esperava o tempo ruim chegar. Quando esta situação acontecia no meio da travessia, não se podia voltar nem prosseguir, a única alternativa era aportar na primeira praia, mas se não desse, o jeito era procurar um remanso na costeira que desse condições para puxar a canoa sobre as pedras com segurança.

Os canoeiros ficavam na costeira aguardando uma calmaria e, estando à professora em terra firme, geralmente ficava longe do caminho, tinha que prosseguir sozinha, embrenhar-se no mato adentro até encontrar o caminho, e rezar para encontrar uma casa no primeiro quilômetro para se abrigar. Fazia ali um pernoite, seguindo por terra no dia seguinte, se a chuva der trégua, caso contrário, varava a semana até que o “Sudunga” perdesse força, normalmente tem uma duração de uma semana, mas pode mudar para um sueste bravo, são quinze dias de chuva fina, tempo fechado. Quando os pescadores ficavam nessa situação, diziam que tinham ficado como o saci na laje em fralda de camisa (isolado). A foto que mostra a simulação é só um tempo feio, para você ter uma noção. É assim que começa a formação de um “Sudunga”, preste atenção e, imagine você dentro de uma canoa a remo pertinho dele em mar aberto, a sua canoa fica reduzida a uma casca de amendoim na imensidão do oceano.

A professora Dionísia, viveu essa rotina por oito anos seguidos e perdeu a conta de quantas vezes passou por essa situação. Nessas paradas forçadas, iniciava a alfabetização de adultos e crianças da casa ou de vizinhos, e na volta, dava novas lições e corrigia as antigas. Em 1936 parou de lecionar na roça, e quando chegou à sua casa na cidade, essa foi a sua primeira frase:

- Eu só estou viva pela Providência Divina.

E os seus conterrâneos caiçaras, que lá deixou, continuaram fazendo este trajeto até a conclusão da rodovia Rio-Santos (BR-101) em meados de 1975, do trecho entre Picinguaba - Ubatuba.

[Clique aqui para acessar a listagem dos textos (já publicados) da série Construindo o passado III.]


Nota do Editor: Francisco Velloso Neto, é nativo de Ubatuba. E, seus ancestrais datam desde a fundação da cidade. Publicado no Almanak da Provícia de São Paulo para o ano de 1873. Envie e-mail para thecaliforniakid61@hotmail.com.
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