Há mais de trinta anos li um texto encontrado na China, datado antes de 2000 a.C. Estava publicado no Caderno Mundo do jornal O Estado de São Paulo, escrito no rodapé, em dimensões minúsculas para o tamanho do achado. Nunca mais me esqueci. Dizia o texto: “O mundo está perdido. Os jovens não querem mais trabalhar e ouvir seus pais”. Era o desabafo de um pai desiludido com a atitude do filho. Parece que o texto foi escrito ontem. Ele discute o eterno confronto de gerações – uma se acha melhor do que as outras. São inúmeras as perguntas recorrentes em todas elas para entender o fenômeno da complexidade humana, mas, a mais óbvia – que deveria ser feita nos casos de transferência de poder nas organizações familiares – é a que quase nunca ocorreu: “Será que meu filho teria a mesma postura se estivesse em outra organização?”. Parece claro que a atitude de um jovem executivo em uma empresa do mercado é diferente. O ambiente competitivo externo o torna mais cuidadoso, menos afoito, mais inseguro, menos arrogante e, mais ou menos, infinitas coisas. Por que essa diferença? Apenas porque na empresa da família ele é dono? Não parece ser somente isso. A questão é porque se trata de família e quando o pai ou o tio é quem está no comando, isso muda tudo. Muda o jeito de ver as coisas e a necessidade de romper possíveis vínculos de dependência. O jovem precisa mostrar competência para si mesmo e para os irmãos ou primos. A competição vai além do trabalho ou do cargo. Está mais no campo da auto-afirmação do que na confirmação da competência. A repetição dos vícios da relação familiar está presente na maneira em que o jovem entende o seu papel no novo lugar de poder. Sim, a questão é de repetição. Não estamos preparados biológica ou emocionalmente para ver nossas repetições. Elas fazem parte do sistema que constrói o nosso modo de ser. Somos de determinado jeito não porque queremos, mas porque experimentamos inúmeras vezes diferentes situações em que os resultados foram favoráveis. O poder para um jovem executivo familiar é extensão da relação de auto-reconhecimento parental. Os pais e os irmãos estarão presentes na necessidade de mudança. Para o filho que recebe o poder, mudar significa mais do que aprimorar o negócio, mais do que ganhar o mercado. Isto porque antes ele já estava atrelado à longa luta para se auto-afirmar como ser humano. O desejo do jovem que assume ou está prestes a assumir a função de liderança é pelo desejo de ser reconhecido por seu trabalho. O pai pagará caro por ter um filho inteligente, preparado e com a questão afetiva parental não resolvida. A criança precisa do olhar do pai como espelho para reconhecer a sua própria competência. Se na infância esse olhar foi de cobrança, inadequado, agora é a hora da solução. O jovem, por sua vez, não percebe isso e o seu racional funciona para esconder a sua necessidade. O que realmente irá movimentá-lo está oculto no mais profundo de seu inconsciente. O passado que sempre apontava para o que faltava – e não para o que se tinha – o atormenta silenciosamente anulando sua visão crítica. A nota oito que ele tirava na escola não era valorizada e o pai ainda cobrava os dois pontos que faltavam para atingir a nota dez. Assim foi construído o desejo de justiça, de acolhimento e a insegurança. Sempre como devedor, esse filho foi se organizando no desejo supremo de um dia mostrar que ele não era tão ruim. Chegou a hora. A família agora depende da sua competência e sabedoria. Não existe oportunidade melhor para tirar o atraso afetivo idealizado em reconhecimento: saber fazer melhor do que vem sendo feito. O filho será ouvido, custe o que custar. É dessa forma que o conflito se instala. Ninguém quer destruir o negócio, porém o ambiente que foi preparado por anos a fio atuará nessa direção. Não há discurso que mude o que percebemos nos olhos e rostos de nossos pais quando éramos totalmente dependentes. Não adianta sentar e conversar sobre os problemas a serem resolvidos, muito menos discutir o que é bom para a empresa. A palavra solta no ar, de ambos os lados, vai entrar no arquivo oculto do passado e movimentar o exército da resistência. Hoje, o que nos interessa é resolver o conflito e, com isso, construir a perenidade da empresa. Não adianta saber como foi construído. Então de que maneira resolver? A equação é simples, porém muito difícil. Primeiro precisamos tomar consciência do que está se passando e que isso não irá resolver os problemas do passado. Segundo, é possível organizar rituais que nos ajudarão. Eles são simples, porém, como todo ritual, pedem o rigor de herói em suas execuções. Algumas regras básicas devem acompanhar o jovem em todos os momentos do dia: • Pensar sempre que a empresa não é sua, mas da sociedade. Esse princípio ajuda muito os executivos, inclusive os que são apenas profissionais e não donos. Essa é uma lei de sustentabilidade da empresa e da vida. Nenhuma empresa pode viver se não for encarada como um corpo vivo do meio em que ela está inserida. Qualquer que seja a empresa, ela é um corpo vivo, um corpo vivo social. • Tudo na vida é passageiro. O jovem irá envelhecer e o processo se repetirá. Seu sucessor também terá desejos diferentes dos seus. Essa lei é básica na empresa e na família. Quando se tornar pai, se ainda não o é, verá que é assim que funciona tudo na vida. • O filho, para ser melhor do que seus pais, necessita ser maior do que eles em alguma coisa. Melhor que seja na capacidade de perdoar. Perdoá-los é premissa básica para continuar a vida sem o fantasma da rejeição e o perdão engrandece qualquer ser humano. • Melhorar o mundo é muito diferente do que provar nossa competência. Provar é atraso, é estar em débito. Ninguém melhora nada se ainda está no vermelho na conta corrente afetiva. Provar deve ser muito útil quando apenas para degustar e não para mostrar. Provar é verbo dúbio que deve ser colocado na dimensão da evolução. É experiência e não pagamento. • E, para fechar o ciclo, é preciso exercitar a humildade. Ela é tudo em um líder – o começo e o fim. Sem humildade, o poder é apenas a forma que o ego tem para se mostrar poderoso. A natureza criou no humano a forma mais sublime de desenvolvimento – a necessidade do outro. É a espécie que mais precisa dos cuidados dos adultos enquanto criança, por isso, a humildade começa no reconhecimento de que os outros são fundamentais para se consegui-la. Não existe humildade sem a presença de outro ser humano. Por isso, se tudo isso estiver difícil é um bom sinal. Somos humanos e devemos procurar ajuda. Como todo herói, o jovem deve saber que as provações são maiores para quem recebe o comando com o bonde andando. Honrar o que já foi construído é fundamental para qualquer um almejar um futuro melhor. E o pai? Continuará a ser como é? Não existe nenhuma tarefa para ele nesse processo? Há sim. E, para quem nunca exercitou, é a tarefa mais difícil – buscar prazer no sucesso do filho. Os pais gostam disso, mas ter prazer é muito diferente. O filho vem ao mundo para nos mostrar muitas coisas. Quando decidimos tê-los, estamos buscando experiência de vida. A melhor de todas é a do prazer. Exercitá-lo é uma das tarefas mais difíceis em nossa sociedade. O sistema está preparado para cobrar e, por isso, aos poucos vamos pensando em realizações e no futuro. Construímos nossos prazeres na imagem do que irá acontecer e não no que está ocorrendo. Tudo está no futuro, mas o prazer está no presente. É hora de se sentar, olhar para a vida e aproveitar o que foi edificado ao longo do tempo. Afinal de contas, o filho é obra a ser admirada. Nota do Editor: Osório Roberto dos Santos, criador e diretor da Cultura & Gestão, é psicanalista, administrador e consultor de empresas na área de cultura organizacional e desenvolvimento humano. Foi diretor-executivo por 15 anos de instituição financeira multinacional de grande porte. É conferencista e coordenador de workshops, em todo o Brasil, sobre liderança e desenvolvimento de equipes em organizações de diversos segmentos do mercado. Responsável pelo planejamento, organização e acompanhamento de Projetos de Gestão de Responsabilidade Social, com ênfase nos stakeholders corporativos, de abrangência nacional também é coautor de livro sobre educação e desenvolvimento humano e pesquisador nas áreas da ciência cognitiva e do pensamento sistêmico.
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