O artigo 305 da Lei nº 9.503/1997 (Código de Trânsito Brasileiro - CTB), prevê a punição com pena de detenção de seis meses a 1 ano, ou multa, ao condutor de veículo automotor que se afastar do local do acidente para fugir de responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída. Da responsabilidade penal A interpretação do texto legal nos permite inferir que o legislador teve por objetivo, obrigar os condutores de veículos automotores a permanecerem no local do evento, para “facilitar” a atuação das autoridades em apurar possíveis responsabilidades civis ou criminais do agente causador da suposta violação a um bem jurídico. Verifica-se que a norma dá maior rigidez à punição dos crimes cometidos no trânsito, entretanto, tal determinação contraria os princípios mais comezinhos do direito brasileiro, dentre eles, o previsto no artigo 8º da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), que determina: Artigo 8º - Garantias judiciais. (...) 2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (...) g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada; e Ou seja, compete ao Estado, através de medidas eficazes no âmbito da Administração Pública, utilizando-se dos órgãos de repressão e prevenção ao crime, apurar o cometimento de delitos praticados no território nacional apontando seus respectivos responsáveis, e não se utilizando de expedientes normativos absolutamente inconstitucionais, pois, a prevalecer tal norma, cabe ao Judiciário obstar a sua efetiva aplicação. O Prof. Luiz Flavio Gomes, sobre esse tema, nos ensina que: "Cuida-se de dispositivo incriminador extremamente contestável. Que todos temos a obrigação moral de ficar no local do acidente que provocamos não existe a menor dúvida. Mas a questão é a seguinte: pode a obrigação moral converter-se em obrigação penal?". No mesmo sentido, o Prof. Guilherme de Souza Nucci [1] esclarece que “Trata-se do delito de fuga à responsabilidade, que, em nosso entendimento, é inconstitucional. Contraria, frontalmente, o princípio de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo — nemo tenetur se detegere. Inexiste razão plausível para obrigar alguém a se auto-acusar, permanecendo no lugar do crime, para sofrer as consequências penais e civis do que provocou. Qualquer agente criminoso pode fugir à responsabilidade, exceto o autor de delito de trânsito. Logo, cremos inaplicável o artigo 305 da Lei 9.503/97”. Deste modo, inaceitável é se impor a alguém que permaneça no local do crime para se auto-acusar, submetendo-se às conseqüências penais e civis decorrentes do ato que provocou como pretende o artigo em explicação. Verifica-se que, além de afrontar diretamente a garantia individual da não auto incriminação, o dispositivo contraria também as garantias da Ampla Defesa, do Devido Processo Legal, bem como a própria “liberdade” do agente. Sendo assim, como já pronunciou o Ministro Celso de Mello: "Ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um ilícito penal" (RTJ 141/512). Da responsabilidade civil Cumpre destacar, de acordo com a referida disposição legal, que se pune não só o indivíduo que efetivamente tem responsabilidade penal ou civil pelo acidente, mas também aquele que não a possui, já que a previsão legal dispõe sobre “suposta” responsabilidade. Criminaliza-se uma conduta na suposição de que seu autor deveria indenizar. Dever este, que não é uma conseqüência necessária do acidente. Destaca-se que a responsabilidade penal do condutor de veículo automotor fará com que ele responda pelo crime que houver cometido, independentemente de seu afastamento do local do acidente. Assim, verifica-se que o bem jurídico (segurança viária) encontra-se devidamente protegido pelas demais tipificações sobre crimes de trânsito, cabendo ao Estado cumprir seu dever de processar e punir aquele que seja responsável pelos delitos dessa natureza. Conclui-se, a partir de tais fundamentos, pela desnecessidade da previsão do art. 305 do CTB no que tange à (suposta) responsabilidade penal/civil do condutor. Já em relação à punição ao condutor que se afastar do local do acidente para fugir de responsabilidade civil é de fundamental destaque o vício que lhe é ínsito. A legislação visa reprimir uma conduta natural do indivíduo, mesmo não tendo cometido qualquer crime, o agente será punido por seu mero afastamento do local do acidente, em razão da responsabilidade civil que possa ou não existir. Conforme esposado, o tipo penal em questão, ao punir a hipótese de afastamento do local do acidente viola frontalmente a Constituição Federal, e na seara civil, afronta o inciso LXVII do artigo 5º da magna carta, pois é vedada pela CF a ocorrência de prisão civil, restringindo-a aos casos do devedor de alimentos e do depositário infiel. Outrossim, concernente a imposição e um eventual inadimplemento da multa imposta pelo artigo 305 do CTB pelo agente infrator, o artigo 7º, item 7 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), restringe a possibilidade de prisão civil, tão somente, ao responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia. Diante do exposto, conclui-se que a aplicação do artigo 305, da Lei nº 9.503/1997 é imprópria, pelos inúmeros vícios de constitucionais que a margeiam. Ademais, a responsabilidade civil ou criminal do indivíduo que causa um acidente de trânsito não depende de sua não evasão do local. O intuito da norma em questão se alcança através da aplicação da lei civil (que atribua ao agente responsabilidade pela reparação dos danos que tiver causado), e da lei penal (que descreva como crime a conduta praticada pelo agente envolvido no acidente de trânsito), sem que haja a necessidade da incriminação do agente que evadiu do local. Em suma, o bem jurídico protegido é alcançável pela simples aplicação das demais normas existentes, que podem, de outras formas, alcançar e tornar o agente civil ou criminalmente responsável. Nota do Editor: artigo escrito pelo Dr Bruno de Almeida Rocha e por Lucas Netto Cardoso, do Fernando Quércia Advogados Associados.
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