Um retrato da pobreza e do descaso
Não há quem não inveje a tranqüilidade de uma colônia de pesca, sua proximidade com o mar, um paraíso longe da turbulência da cidade grande. Mas a realidade é bem outra. O contato direto com a natureza é quase sempre extenuante, a tranqüilidade é apenas aparente e, de perto, mal dá para esconder a vida dura, incerta e perigosa dos pescadores artesanais. Assolados pela situação econômica do País, pela destruição dos manguezais e, principalmente, pela pesca predatória, esses pescadores estão à beira do desaparecimento. Sobrevivência A pesca artesanal se caracterizava, fundamentalmente, por usar redes adequadas para cada espécie, sempre respeitando a época do defeso (quando a pesca é proibida na época da desova e indivíduos jovens estão na fase de crescimento), garantindo a sobrevivência dos pescadores e das espécies marinhas. Essa relação de respeito mútuo, no entanto, vem sendo violada de forma sistemática e crescente há alguns anos, em todo o mundo. Sobrevivência é hoje a palavra de ordem em todas as comunidades de pescadores. Se a pesca não está dando para sustentar a família, o jeito é virar caseiro de veranista, ir para a cidade, empregar-se numa traineira ou, pior ainda, engrossar o número cada vez maior de desempregados. Até uns 20 anos atrás, garantem os pescadores, um dia de trabalho podia render cerca de 300 quilos, dentro do estuário. Agora eles têm que ir para alto mar e nem assim chegam à metade disso numa semana inteira. A culpa, atestam o pescador artesanal e os pesquisadores, é da pesca predatória, da poluição dos estuários, da destruição dos mangues e, principalmente, da falta de uma política e gestão por parte das autoridades do setor. Pesca de arrasto Velozes, fortes, equipados com sonares sofisticados, os arrasteiros chegam, arrastando as chamadas redes de porta e parelhas (dois barcos que arrastam a mesma rede), o que é proibido por lei. Apesar de a pesca só ser permitida a partir de 1,5 milhas da costa (exceção para o Rio Grande do Sul que limita a 3 milhas), é freqüente vermos barcos arrastando a menos de cem metros da praia. Graças ao sonar, os arrasteiros localizam os cardumes e passam a mensagem pelo rádio. Em questão de minutos, outros barcos de pesca podem se juntar na área, "expulsando" as frágeis canoas artesanais. Um barco de pesca industrial que utiliza a pesca de cerco, por exemplo, joga suas redes para cercar um cardume, algumas com mais de dois mil metros de comprimento e 60 metros de altura. Com apenas duas voltas, elas podem juntar mais de dez toneladas de peixes, capturando com sua malha fina tudo o que estiver nas imediações, inclusive golfinhos e tartarugas, e abandonando mortas as espécies não aproveitadas. Para se ter uma idéia do rejeito de pesca, na pesca do camarão-sete-barbabas este pode chegar a mais de 70% de toda captura. Neste rejeito estão peixes, crustáceos, equinodermas, moluscos e ovos de vários organismos, que morrem afetando toda a cadeia trófica. Pescador artesanal Vida de pescador artesanal definitivamente não é fácil: a rotina é exaustiva e arriscada. Antes mesmo do sol nascer, muitos já pegaram suas canoas para se aventurarem em alto mar, mas a hora da volta é uma incógnita a cada dia. Enquanto os barcos industriais utilizam sonares, os pescadores artesanais seguem a sua intuição e a experiência de uma vida para achar o cardume, para então jogar a rede. As malhas sempre seguem as medidas de 70, 80 milímetros ou mais de diâmetro, de forma a só pegar peixes adultos, ao contrário da rede de malha fina, usada pela pesca de arrasto. Ao chegar ao local escolhido, começa a cansativa tarefa de jogar uma rede de mais de mil metros de comprimento, mantendo-a afastada da canoa, com o auxílio de um bastão. Depois de estendida a rede, o barco dá uma volta e o pescador começa a jogar a poita, um chumbo de mais ou menos dois quilos, atado a uma longa corda, para ancorar a rede. Essa rotina é feita quase que constantemente, durante todo o dia, e há vezes em que uma redada não produz nada. Ao final, o produto diário nem sempre é suficiente para pagar sequer o óleo gasto. A diferença de preço entre o custo do material, o valor pago pela peixaria ao produtor e o preço pelo qual este é vendido no mercado é mais uma realidade a amargar a vida dos pescadores. Uma rede de malha, com 150 metros de comprimento e malha de cem milímetros, custa por volta de R$ 2.000, quantia que a maioria dos pescadores leva aproximadamente de quatro a seis meses para conseguir, e uma canoa motorizada não sai por menos de R$ 9.000. Perda da comunidade A vida na comunidade, devido às dificuldades e ao tempo gasto no mar, já não é a mesma. Ao chegar, cada pescador vai para a sua própria casa. Ninguém pensa em se reunir na praia para conversar. Nem mesmo aos sábados há descanso: é dia de ir à peixaria receber o dinheiro dos peixes e saldar as dívidas, tarefa que, às vezes, dura um dia inteiro. O senhor Antunes Teixeira, de 70 anos, pescador desde os oito, lembra da época em que os pescadores saíam de manhã e voltavam sempre de barco cheio, mas reservando os finais de semana para o lazer e a família. Hoje trabalham todos os dias sem hora para sair ou chegar e não são raras as vezes em que chegam de mãos vazias. Ele vê com tristeza que a pesca predatória está levando muitos pescadores a venderem seu material e partirem para a vida na cidade, aventurando-se numa realidade anômala para eles. "Pelo menos na comunidade todos se ajudam, fome mesmo ninguém passa", afirma Feliciano da Cunha, pescador da comunidade do Pontal do Leste (extremo sul do litoral paulista). O sol cáustico, o vento forte, a tensão quando se tem que atravessar uma barra, o sal e as dificuldades para sustentar a família exaurem a saúde e a juventude dos pescadores em pouco tempo. Antes mesmo dos 40 anos, a sua pele já está toda enrugada e envelhecida e os olhos apresentam diversos tipos de enfermidades. Tudo isso torna difícil inspirar-se na natureza e pensar em romantismo. Que o digam suas mulheres, que além da labuta e de muitas noites de solidão e medo, ainda têm que agüentar o cansaço e a irritação do marido e dos filhos. Ultimamente, os jovens pescadores deram para beber na rua e brigar em casa, movidos pela insatisfação e falta de perspectivas. Dona Maria, mulher de pescador, nascida e criada nessa vida, como algumas outras, além de trabalhar fora para ajudar no orçamento, às vezes sai com seu marido para ajudar na pesca. O desejo de todos os pescadores artesanais é que a vida volte a ser o que era até uns 30 anos atrás, quando era possível sustentar, e bem, a família inteira. Eles esperam que as autoridades tomem as devidas providências, delimitando as épocas de defeso e fiscalizando a pesca de traineiras e arrasteiros que, aos poucos, estão matando a vida não só das baías, como também dos pescadores. Se nada for feito, muitas espécies só serão vistas nas fotos, só existirão na lembrança dos mais velhos, como história fantasiosa de pescador, e o modo de vida dos pescadores artesanais, só em documentários. Nota do Editor: Edison Barbieri é Pesquisador do Instituto de Pesca da Secretaria da Agricultura e Abastecimento do Estado de Sâo Paulo. Oceanógrafo com mestrado em geografia Física e doutorado em Oceanografia Biológica pela USP. Fernanda Voietta Pinna é Acadêmica de Biologia do Centro Universitário Sâo Camilo. (Fonte: Pauta Social)
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