Qual é a distância entre o discurso politicamente correto e a prática? Algumas vezes pode ser bem grande. Basta pararmos um pouco para analisar nosso dia a dia e logo nos pegamos em alguma situação que pode ser vista como preconceituosa. Somos iguais e gostamos de carnaval, mas não queremos estar no meio de uma multidão mais simples que pula e transpira alegremente. No trabalho, do faxineiro ao presidente, todos merecem ser tratados da mesma forma mas, e na prática, sempre agimos assim? Preconceito é um assunto delicado que está presente em toda sociedade desde a época do Brasil Colônia, e mudar isto não é tarefa fácil mesmo quando se começa ainda na infância. Foi o que constataram dois professores da Escola Viva, enquanto trabalhavam com os alunos da 6ª série o tema "Brasil". O objetivo era questionar os estereótipos que estes garotos tinham sobre o que é ser brasileiro. Logo de início, surgiram dados interessantes. Ao definirem o cidadão "brasileiro", eles apresentaram descrições de pessoas muito diferentes deles próprios. "Para a grande maioria, o brasileiro era mulato, pobre, vivia na praia e gostava de beber caipirinha", relata o professor de Geografia da escola, Henrique Delboni. "O curioso foi perceber que a imagem que tinham do brasileiro era parecida com a que os estrangeiros têm. Algo como a de um país com uma natureza exuberante, com um povo que gosta de futebol e carnaval", completa. O assunto, que já vinha sendo tratado em sala de aula, ganhou um novo impulso quando um incidente aconteceu durante uma visita ao Museu Afrobrasileiro, onde encontraram alguns meninos de rua. Um dos alunos fez um comentário: "esses favelados!". Os meninos de rua escutaram, se revoltaram e apedrejaram o ônibus da escola. Este triste episódio logo foi aproveitado pelos professores para questionar o preconceito. "Pedimos para que cada um escrevesse um texto relatando o que havia acontecido naquele dia. Fizemos questão de que eles percebessem que cada um ali representou o papel que a sociedade espera deles: a classe mais abastada que se sente incomodada e discrimina e a mais pobre que se revolta e agride", conta o professor de história da Escola Viva, Ricardo Dregher. Durante o trabalho, uma das grandes constatações dos professores foi de que, apesar de os alunos terem um discurso contrário ao preconceito, à discriminação racial e social, na hora que era preciso sair da teoria e colocar estes conceitos na prática, a atitude já não era a mesma. Para desmontar estes vários pré-conceitos, os professores buscaram, por meio de várias atividades, mostrar aos alunos que eles repetiam o discurso da classe dominante. "O que acontece é que de tanto ser repetida esta postura preconceituosa acaba sendo absorvida pelas outras classes e se torna senso comum", explica Henrique. Para uma das atividades, os estudantes entraram em contato com uma realidade bem distante da que vivem - viajaram em maio para a Ilha do Cardoso e Iguape, região de baixa renda do Vale do Ribeira. Eles repetiram o trajeto feito pelo filósofo francês Albert Camus que em 1948 lançou "O Diário da viagem à Iguape", com suas impressões pessoais sobre o lugar, que incluía elogios à natureza e críticas ao povo cordial e extremamente religioso. Das entrevistas com a população local, os estudantes retiraram material para fazer um diário de bordo e também responder em forma de diálogo aos comentários de Camus. "Por meio deste trabalho, os alunos puderam colocar no papel suas próprias impressões e, então, contrastá-las com a visão de um estrangeiro que passou por ali. Eles perceberam que, muitas vezes, a realidade é bem diferente do que a que aparece naquele relato e que as impressões que tinham antes sobre os brasileiros reproduziam preconceitos transmitidos através das gerações", diz Ricardo. Uma mostra no mês de junho marcou o fim do projeto e reuniu diversos trabalhos feitos pelos alunos nas disciplinas de geografia, história, ciências e artes. Em fotos, diários, textos e instalações, os estudantes mostraram aspectos do povo brasileiro bem diferentes daqueles que citaram no início do ano, entre eles a desigualdade, a mistura racial, a religiosidade. A qualidade do material surpreendeu os professores. "Um dos trabalhos mostrou um Cristo Redentor negro", conta Ricardo que comemorou o final do trabalho com a sensação de dever cumprido. "Foi uma tarefa difícil, afinal o projeto pedia um alto grau de abstração de alunos com apenas 10 anos de idade. Mas o nosso objetivo foi atingido. Queríamos mostrar que a criação de uma consciência de respeito ao próximo e às diferenças é um processo longo de aprendizagem, e não um mero discurso contra o preconceito que normalmente muitas escolas fazem", completa.
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