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Ano 1 - Nº 9 - Ubatuba, 14 de Junho de 1998
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· Sabores da infância
    Settembrini
    articulista@ubaweb.com

Os ecochatos que me perdoem, mas tenho na memória e me dá água na boca quando me lembro, como agora, de uma passarinhada frita, de sabiás-pretos bem gordinhos, com arroz e palmito refogado ou urus assados na brasa, depois de um certo tempo de descanso num bom vinha-d'alho. Porco-do-mato, cotia, paca, tatu, gambá, preguiça, macuco, jacu, jacutinga, tucano, dorminhoco, todos esses animais, aves e pássaros fizeram parte do cardápio de muitas casas caiçaras. Alguns desses espécimens, não era preciso ir muito longe para encontrá-los, havia nas proximidades da cidade. Caiçara não vivia só de "frutos dos mar". Havia um outro mar verde e generoso - a Mata Atlântica.
Caiçara nenhum, que me lembre, passava fome nessa vida, a não ser que sofresse de vadiagem crônica. Comida havia até na areia da praia: sapinhanguá, cumbiá, tarioba e pregoava. O sapinhanguá é o tal do vôngole, para os italianos. Nas pedras da costeira: o guaiá, o santola, o pindá, o sururu, a ostra e o saquaritá. Este, dizem alguns, é excelente afrodisíaco; outros, que serve só para criar terríveis flatulências.
Na minha infância, vivíamos caçando passarinhos, animais de pequeno porte - gambás e preás, pescando robalinhos no rio Grande ou garoupas e sargos nas costeiras mais próximas de casa. Na caça aos passarinhos, que havia em quantidade incalculável, usávamos estilingues, esparrelas, laços, arapucas e gaiolas de alçapão, feitas com as flechas de uma espécie de cana que havia na região ou das hastes do guapuruvu. Lembro-me da alegria que senti quando consegui uma dessas gaiolas feitas com inigualável mestria pelo seo Luiz Quéqué. Com ela cacei e comi muitos sabiás-pretos, que nos meses de inverno desciam da Serra do Mar em bandos, procurando lugares mais quentes na proximidade das várzeas do litoral.
TatuOstraTucano
Toda essa história, nos dias de hoje, me faz um monstro para aqueles que são insensíveis e burros para essa questão de meio ambiente. Mas eu me considero um homem privilegiado de ter convivido quase que umbilicalmente com a natureza do lugar onde nasci. Não me lembro de desequilíbrio de ecossistemas pela ação de minha gente em nosso espaço vital. Só depois que começaram a se instalar no município os tais investidores imobiliários, vindos de outras cidades, é que a terra e o mar deixaram de ser um valor existencial para se transformarem em valor comercial para todo mundo. Então a terra e o mar foram ocupados, sem sentimento e sensibilidade; construíram-se loteamentos, extinguiram-se os terrenos baldios das crianças, asfaltaram-se as ruas, abriram-se estradas, surgiu o vai-e-vem dos carros, os desmatamentos para os "empreendimentos", os grandes barcos das companhias pesqueiras, com suas redes de malhas fina, o esgoto das residências, dos condomínios e dos edifícios, jogando merda no lençol freático... Enfim, coisas do progresso.
Faz uns trinta anos que não ouço, não vejo e não como um sabiá-preto. No fundo do quintal de casa, plantei um pé de aroeira, próximo das bananeiras, mas só apareceram sanhaços e os tiés, que já se acostumaram à vida urbana. Fazem um estrago danado nas frutinhas vermelhas da aroeira e nas bananas quando estas começam a amarelar. Depois vão embora, para, no dia seguinte, retornar. Ninguém os importuna. Ah, outro dia apareceu um sabiá-galinha. Creio que irá fazer ninho no meu quintal ou nas proximidades de casa. Bem cedo ou à tardinha ficamos escondidos pela cortina da janela do quarto, espiando-o ciscar em busca de minhocas. Meus filhos não dão muita importância. Quando pequenos brincavam com brinquedos da Estrela, da Grow e de sei lá mais que marca. Assistiam o Jacques Cousteau e National Geography pela televisão. Nunca abateram um passarinho, tampouco o comeram. Alimentam-se de carne de vaca e frango de granja. Não são muito chegados nos "frutos do mar". Coisas do tal do progresso, da civilização. Quanto a mim, ainda sinto na boca o sabor de certos espécimens da culinária caiçara. Na verdade, sinto saudades de todos os sabores, de todas as sensações da infância.Fim do texto.
· AS ÁGUAS NÃO VÃO ROLAR
    Aládio Teixeira Leite Filho
    articulista@ubaweb.com

Desde que o mundo é mundo, existe seca no Nordeste. O problema da falta de chuva, certamente, não poderá ser resolvido por nenhum ser, por mais neoliberal e iluminado que seja, contudo, o que vale destacar é que os governos se sucedem e nenhuma medida é tomada no sentido de se minimizar o grave problema decorrente da seca, que sempre foi o ponto central, como geradora de fome e morte naquela Região. O que ocorre, e isto também não é mistério pra ninguém, é que a seca do Nordeste é lastro político importante que mantém incólume o poder dos coronéis, que são senhores da vida e da morte naquela região.
SOLO SECO - Nordeste Brasileiro
Água no Nordeste existe, é só voltarmos nossos olhos para as fazendas dos políticos e chefes de oligarquias na região, para podermos constatar a presença da fonte da vida, rolando abundantemente, inodora, insípida e incolor como nunca, fluindo em terras férteis, dominadas por admirável verde que dia-após-dia se renova; todavia, contrastando com tudo isso, a poucos quilômetros, a terra esturricada, com crianças famintas e esquálidas e homens vencidos pela falta de trabalho e perspectivas mínimas de vida.
Muitos, face às dificuldades de sobrevivência, não mais agüentando tanta miséria e dor, juntam os últimos tostõezinhos e embarcam no primeiro ônibus para o Sul, onde sonham com dias melhores...
Aqui no Sul, as condições de vida que os esperam não são também das melhores, pois são pessoas que não têm um mínimo de qualificação profissional, a grande maioria analfabetos e, com isso acabam sendo explorados e submetidos a regimes de trabalho (isso quando conseguem trabalho) que não lhes dão nenhuma proteção, nenhuma garantia, sendo sujeitos a jornadas estafantes, tendo ainda que enfrentar os preconceitos, de que não raramente, são alvos aqui no sul.
Sem moradia ou salários dignos, acabam em favelas ou palafitas e, cansados de tanta miséria, tendo quotidianamente que conviver com situações extremas, tais como a dos filhos passando fome, e sob as pressões do novo mundo onde foram obrigados a virem viver, acabam apelando para atitudes desesperadas e caem na marginalidade ou se desgraçam no alcoolismo, poucos conseguindo uma estabilidade mínima, o que nos leva a triste conclusão de que, para aquela pobre gente, a fome e as extremas dificuldades sociais a que sempre estiveram submetidos, seguramente, não é uma questão de geografia e sim de decisão política, que nunca ocorre, porque existe uma meia dúzia de políticos vampiros e incompetentes que para se elegerem ou para tirarem proveito econômico, impiedosamente utilizam o drama das vítimas, não tanto da seca, mas muito mais da desumanidade desses antológicos crápulas, que não permitem através da influência que possuem junto aos que têm o poder de decisão política, sejam viabilizadas as providências técnicas, através do uso de tecnologia hoje existentes e sobejamente utilizadas em várias partes do mundo, para contornar problemas em regiões com clima árido, seguido de escassez de água, similarmente ao que ocorre no Nordeste, aspecto que tem perpetuado a via crucis daquela pobre gente, que só faz implorar um pouco de água para beber ou para plantar suas rocinhas e colher o bendito e santificado fruto da terra que, sem dúvida alguma, os redimiria de tanta miséria...
Acorda, Presidente! O Nordeste pede socorro, que não deve vir somente em forma de cestas básicas, que em termos emergenciais é até fundamental, mas principalmente que V. Excia. viabilize a infra-estrutura necessária ou contrate logo uma eficiente pajelança que faça chover no sertão, para dar cabo definitivo desta verdadeira epopéia de exploração e fome, do valoroso sertanejo de nosso Nordeste, que é, antes de mais nada, um forte, conforme tão sabiamente os definiu o saudoso e grande escritor Euclides da Cunha, em sua obra "A Guerra de Canudos"...Fim do texto.
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