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COLUNISTA
Alexandru Solomon
07/12/2016 - 05h46
Não há problema
 
 

– Olha, foi muito bom ter conversado com você. Revivemos tantos bons momentos. Foi como se tivéssemos rejuvenescido. Aliás, rejuvenescer como? Somos jovens.
– Mais uma vez, muito obrigado.
– Ora, para que servem os amigos? Fique tranquilo!
Amigos de verdade são aqueles com os quais podemos contar sempre, em quaisquer circunstâncias. Sentiu-se aliviado. Nos últimos tempos, tudo saíra errado. “Se algo pode dar errado, dará”. Aquela lei de Murphy o estivera perseguindo impiedosamente. Mas, agora, enquanto caminhava para o elevador do luxuoso edifício de escritórios, saboreava, ainda incrédulo, o gosto da volta por cima. O pesadelo ia ficando para trás...
Após quinze anos de trabalho na mesma empresa, poucas semanas atrás, numa sexta-feira, viera o glorioso telefonema, do departamento de Relações Humanas... o que tinha de humanas?
Sem mais, um funcionário empertigado, entre alguns telefonemas para “docinho”, explicou que uma total reestruturação nas atividades da firma estava em marcha. Para tanto, a empresa contava com o apoio de um escritório de consultoria e, atendendo às recomendações, fruto de um estudo exaustivo da equipe, estava na difícil situação de informar que o seu corte, recomendado, tornava-se efetivo a partir daquele momento.
Foi difícil assimilar o choque, pois, mesmo sabendo das atividades dos consultores, aos quais descrevera suas funções com minúcias e com o seu desembaraço costumeiro, nada permitia supor que o corte o afetaria. Pelo contrário, sua explanação cativara os consultores que a acompanharam sempre com muito interesse. Tivera que responder a várias perguntas e, com o seu humor, conseguira arrancar algumas boas risadas dos seus interlocutores. Nas rodadas subsequentes, tinha sido solicitado, em mais de uma oportunidade, a participar de reuniões, a fim de discutir alterações no organograma. Eles ouviam, anotavam tudo, e marcavam novas e intermináveis rodadas.
Só um cego não teria percebido a sua importância para a empresa. Eles eram profissionais, não poderiam pecar por falta de lucidez, que diabo!
Mais cego fora ele por ter caído numa armadilha. Sua função era, de fato, muito importante, sim. Tão importante que, no futuro, seria mantida e haveria de ser desempenhada por outro. Ele era extremamente útil, mas caro demais para a empresa. Não restava mais nada a discutir com o empertigado. Aquele era um mero porta-voz, talvez um pouco sádico, mas sem autoridade para alterar uma decisão superior. Pediu para ser atendido pelo diretor da área, mas foi informado de que a agenda dele estava lotada. Decidiu telefonar-lhe de sua sala.
Seguiu-se a degringolada.
Ao voltar para a sala, encontrou em cima da sua mesa uma caixa de papelão, contendo os objetos das gavetas, cuidadosamente colocados pela sua secretária que, em prantos, concluía a tarefa. O computador estava desligado, não havia mais telefone em cima da mesa. Mesmo o vaso com uma poderosa samambaia não se encontrava mais lá. Pensou por uns segundos estar assistindo a um comercial de uma empresa de mudanças.
Passado o trauma inicial... vieram os traumas posteriores.
Achar emprego não era fácil. Perdeu uma oportunidade por não falar alemão, uma outra por não querer mudar para Manaus e, assim, sucessivamente. Nada indicava que a sua odisséia estivesse para terminar. Um amigo lhe sugeriu redigir seu currículo em papel azul... “é uma receita infalível, cara”. Em vão.
Concomitantemente o orçamento familiar, apesar de enxugado, era marcado por algumas prestações inevitáveis. Faltava quitar o apartamento e o carro novo, comprado poucos meses atrás, obviamente não estava totalmente pago. O pessimismo aumentava na proporção do derretimento da poupança.
Naquelas poucas semanas, o executivo bem sucedido deixara de ser executivo para virar nau a deriva. Nem merecia o nome de nau, barcaça, jangada, chata, o retratariam melhor.
A famosa luz no fim do túnel permanecia teimosamente apagada, deixando o não menos famoso túnel na escuridão. “Mergulho nas trevas do desespero” parecia um bom título para o pesadelo, desde que fosse plausível pesadelo possuir título.
Ficou frustrado com a tentativa de se livrar do carro, ao descobrir que o preço possível de se obter seria insuficiente para quitar a dívida. Resolveu ficar com o carro e com a dívida. Tentou sem sucesso renegociar o valor das prestações do apartamento, e o máximo que resultou desse esforço, foi uma sequência de reuniões irritantes e improdutivas. Chegara ao estágio de mal compreender as próprias atitudes.
Teve que ouvir da sogra o doce comentário: “Como é que alguém enfrenta o mundo sem ter reservas financeiras?” Naturalmente, não foi um comentário isolado. Inspirada, com toda a certeza, pelo Bolero de Ravel, a digna senhora retomava a pergunta com intensidade crescente. Aquele ser inefável lembrava um vulcão extinto voltando à atividade. Como nos tempos de noivado, durante os quais ela fora voto vencido.
No desespero, suavemente acalentado pela sogra, apelou para os amigos, constatando que pouco podia esperar deles. Por egoísmo, ou por causa de problemas que eles próprios estavam enfrentando, não havia logrado êxito algum.
Um a um todos conseguiram se esquivar de uma forma mais ou menos gentil, mas igualmente inflexível. Naquela manhã, era a vez de queimar seu último cartucho.
Por uma espécie de misto de pudor e orgulho, hesitara um bocado, antes de falar com R., procurando evitar ter de recorrer a essa tábua de salvação.
R., o colega de faculdade. Durante aqueles anos tinha carregado R. nas costas e como R. era pesado! Mas, logo após a formatura, R. percorrera uma trajetória fulminante, de assistente administrativo a vice-presidente executivo em menos de dois anos. É bem verdade que a proeza tinha tido como palco a empresa do pai, como não se cansavam de lembrar os invejosos. Não era esse o motivo de não ter procurado ajuda de R.
Sentia uma espécie de repulsa instintiva. O rebocador pedindo para ser rebocado, por aquele que fora apenas um peso morto na escola. Mas não sobrava mais espaço para esse tipo de reticências, mesmo lembrando que não tinham mais nada em comum.
Qual não foi a surpresa, quando descobriu ser suficiente um único telefonema, para ter uma reunião marcada, já para a manhã seguinte.
E assim, envergando seu melhor terno, azul escuro, com uma gravata Hermés, remanescente dos bons tempos, sapatos de cromo, e um sorriso meio forçado, desembarcou no escritório do ex-rebocado.
Uma secretária sinuosamente competente o avisou que o doutor R. demoraria alguns minutos. Como por encanto, uma espécie de almirante já colhia informações sobre as suas preferências com relação ao café: forte, fraco, doce, amargo, se doce com adoçante ou com açúcar. De passagem, investigou se o ilustre visitante apreciaria ser hidratado. Caso afirmativo, poderia oferecer a critério do “doutor” água com ou sem gás. Dirimidas as dúvidas, o almirante ressurgiu, após um sumiço cheio de classe, trazendo o café, a água e a informação da chegada do doutor R.
Sem rufar de tambores R. chegou.
– Olá velhão, vamos entrar. Desculpe, se o fiz esperar.
Entraram num escritório cinematográfico.
R. dirigiu-se ao intercomunicador e lançou:
– Só passe as ligações de sempre. Café para nós, obrigado. O que me conta, meu guru? O que tem feito de bom esses anos todos? Mas nem um telefonema até ontem? Sei por terceiros que está indo bem...
– Bem mal... estou numa pior.
Em poucas palavras resumiu a história. O outro ouvia atentamente. Pouco a pouco, o sorriso estava se apagando.
– Em todo caso, eles deverão afundar mais cedo ou mais tarde. E será por merecimento. Não sabem o que estão perdendo. Você tá precisando de grana? Entre amigos não vale a pena contar histórias.
Era uma abordagem um pouco rude, mas de fato ele não estava lá para tecer comentários acerca da “Critica à razão pura”. Era melhor terminar logo.
– Para ser sincero, preciso sim, a embarcação está fazendo água. O que preciso é trabalhar.
– Não se preocupe. Eu não tenho disponível, mas podemos fazer um arranjo. A empresa lhe paga por algum serviço prestado. Só vou lhe pedir para emitir uma nota de serviços de valor maior, está me entendendo?
Claro que estava entendendo. Estaria sendo usado de novo, de uma forma diferente. Gerador de caixa-dois. Mas que coisa! Sua primeira reação foi recusar. Já estava abrindo a boca, quando o outro, como lendo seus pensamentos, se antecipou.
– Tá bem, senhor escrupuloso, esqueça. Vamos achar outra maneira. Não precisa se torturar. Vamos fazer mil por cento, ou quase dentro do figurino. É só trazer a nota de serviços, e me deixar uma cartinha mencionando o valor, afinal não somos imortais. Combinado? Não precisa me agradecer. Depois... depois procuro encaixar você na empresa. O que sabe da nossa turma? O Diogo largou a mulher... o Henrique está...
Despediram-se com um caloroso aperto de mão. Finalmente as coisas estavam se acertando. Deveria ter apelado logo para o R. Demora idiota a dele...
Já no elevador, radiante com essa reviravolta, não pode ouvir R. dando instruções precisas:
– Não atendo nenhuma ligação telefônica dele.


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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