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Contos
11/12/2016 - 05h52
A despedida
Pedro J. Bondaczuk
 

- Ouçam! É o Lucas que virou, de novo, lobisomem – afirmou, convicto, o moleiro Manoel, a respeito de um conhecido nosso, que já havia trabalhado, há uns dois anos, na fazenda do meu avô.

A reação foi provocada pelo uivo desesperado e lúgubre de um cão nas proximidades da casa. Era sexta-feira, de uma noite qualquer de agosto de 1947, nos arredores de Santa Rosa, interior do Rio Grande do Sul. A Lua Cheia brilhava intensamente no céu, com seu clarão iluminando as casas e as ruas sem calçamento e sem iluminação pública, criando cenário propício para alimentar crendices e superstições daquela gente humilde e simples.
- E você acredita nessas bobagens? – perguntou meu pai, homem esclarecido e cético que zombava da superstição do amigo.
- Não só acredito, como já vi o Lucas transformado em lobisomem, seu Francisco - respondeu. - Corri o quanto pude. Desafiar esse tipo de criatura não é coragem, mas burrice – acrescentou, tentando se justificar.

Meu pai limitou-se a gargalhar, daquele seu jeitão franco e espontâneo, com a risada ecoando por todos os cômodos da casa. Apesar do adiantado da hora, ele não baixou o tom de voz. Esse, aliás, sempre fora seu costume, para desespero da minha mãe, dona Lúcia, pacata e sossegada, que pigarreou de um dos quartos, numa espécie de censura. Afinal, não estávamos em nossa casa. Era preciso mais respeito com quem queria dormir.

O alarido acordou a esposa do Manoel que, estremunhando, vestida com um robe desbotado, de um tom rosa pálido, que já conhecera melhores dias, foi para a cozinha, assustada, saber o que estava acontecendo. Eu, da minha parte, não havia conseguido conciliar o sono. Estava elétrico, tenso e excitado com o que me esperava nas próximas horas. Ouvia toda a conversa e ria, com meus botões, das tolices do moleiro.

Meu pai, para não magoar o amigo, com o qual já tivera inúmeras discussões a propósito desta e de outras lendas locais, mudou, estrategicamente, de assunto. Perguntou, como quem não quer nada, quais eram as novidades da cidade grande.

Enquanto isso, a mulher, dócil e submissa, apressou-se em preparar um chimarrão para todos. Colocou, com paciência e perícia, a erva na cuia, enquanto aguardava a água da chaleira ferver no fogão a lenha. Além do meu pai e do Manoel, participavam da conversa os dois filhos mais velhos deste, Malaquias e Fabiano. Ambos, porém, pouco falavam. E quando o faziam, limitavam-se, meramente, a confirmar as palavras do pai. Santa Rosa, esclareça-se, naquele tempo, perto de onde morávamos – um novo e pacato distrito, cujo vilarejo central consistia somente de duas ou três ruas de terra batida, se tanto, chamado de Horizontina, caracterizado pela colonização de imigrantes provenientes do Leste europeu, na maioria russos e ucranianos – era verdadeira metrópole, embora não tivesse nem trinta mil habitantes.

Estávamos na casa do moleiro porque pela manhã, exatamente às cinco horas, embarcaríamos, eu e minha mãe, para São Paulo. Iríamos na frente, enquanto meu pai ficaria mais algum tempo em Horizontina, para vender nossos parcos bens, antes de seguir definitivamente para a cidade que, para nós, era a Meca das oportunidades, a possibilidade de mudarmos de vida, nos ilustrarmos, termos, enfim, um futuro que sonhávamos fosse radioso e progressista.

Já passava da meia-noite. Tinha, portanto, menos de cinco horas para conciliar o sono, antes de nos trocarmos, fazermos as respectivas despedidas e embarcarmos rumo ao que era, pelo menos para mim (na verdade para todos os que estavam na casa) desconhecido. Aquela viagem, há tantos meses planejada, tinha, para o garotinho sapeca e esperto, que os pais pretendiam que fosse, um dia, médico, engenheiro ou advogado, o sabor de fascinante aventura.

Eu imaginava São Paulo muito diferente do que era. Jamais havia visto cidade maior do que Santa Rosa e, na minha imaginação, este era o meu parâmetro de grandeza. Imaginava a metrópole paulista, que “não podia parar” (conforme já era seu slogan) como um grande vilarejo, nada mais do que isso. Sequer sonhava com ruas tão apinhadas de carros, com multidões indo de lã para cá em permanente correria, com tanto barulho e fumaça.

Arranha-céus? Nunca tinha visto nenhum. Se me dissessem que existiam, e que eram tantos e tão altos, ficaria irritado com quem me dissesse, certo de que estivesse tentando me enganar. A maior casa que eu já vira era um sobrado no centro de Santa Rosa, de propriedade de um comerciante alemão. E já considerava uma exorbitância, um exagero.

Enquanto, excitado, eu dava asas à imaginação, a conversa na cozinha continuava mais animada do que nunca, com a voz do meu pai se destacando entre as demais. Conversavam, agora, sobre política, sobre a necessidade da volta de Getúlio Vargas ao poder. Embora houvesse consenso entre os amigos a esse respeito, a conversa mais parecia uma discussão do que um diálogo, tamanha a ênfase que cada qual punha em suas respectivas opiniões.

Meu pai era getulista ferrenho. Considerava-o “o pai dos pobres” e sentia-se órfão com seu afastamento temporário da política. Manoel também era adepto do caudilho, mas manifestava certo tom de crítica, relativa mágoa até pelo fato do matreiro político pouco ter feito pelo Rio Grande do Sul, principalmente pela região de Santa Rosa, conforme seu entendimento.

Meu pai discordava, claro. E dessa discordância nascia a discussão que, embora acalorada, não deixava de ser cordial, por paradoxal que pareça. Afinal, naquela roda todos se estimavam e se consideravam, de certa forma parentes, mesmo sem que o fossem. Ademais, essas discussões eram costumeiras, freqüentes, diria que semanais, pois se repetiam sempre que meu pai e o moleiro se encontravam, quer em sua casa, em Santa Rosa, quer na nossa, em Horizontina.

Excitado, eu estava dividido. Tanto ouvia a conversa dos adultos, quanto imaginava como seria essa São Paulo de que meus pais tanto falavam, e com tamanha esperança, na verdade certeza de uma vida melhor. Na época, não me passava, nem remotamente, pela cabeça que aqueles seriam os derradeiros momentos que eu passaria na minha terra natal. Que, embora bem sucedido na grande metrópole, um dia sentiria tamanha saudade dos campos verdes de Horizontina, das pacatas ruas de Santa Rosa e, principalmente, daquela gente tão amiga e tão querida, que nem sei que fim levou.
- Mãe, como é São Paulo – perguntei em determinado momento, esperando uma explicação que satisfizesse, pelo menos um pouco, minha intensa curiosidade.
- Você está acordado, menino?! – disse minha mãe, em tom de severa reprimenda.
– Você deveria estar dormindo. Daqui a pouco vamos viajar e não quero que você me dê nenhum trabalho, ouviu? – completou, em tom de ameaça.

Fiquei quieto, por medo de levar algumas palmadas. Claro que, mesmo que quisesse, não conseguiria dormir. Quem conseguiria? Com tanta novidade à minha espera, era impossível me desligar, por um momento que fosse, e atender à sábia recomendação (na verdade, enfática ordem) da minha mãe.

Continuei ouvindo a conversa dos adultos. Ouvindo, sem ouvir. Ou seja, sem atentar para os assuntos tratados. Eu estava com a mente em outros mundos, ou melhor, no “futuro”, tentando adivinhar como era essa São Paulo, da qual diziam tantas maravilhas, onde a família previa que teria vida melhor. Antes de me dar conta, chegara a hora de levantar e se preparar para a longa viagem de trem, de três dias.

Ficaríamos, eu e minha mãe, hospedados na casa dos meus avós maternos, que residiam na metrópole paulista, até que meu pai liquidasse nossos parcos bens em Horizontina e fosse ao nosso encontro, com dinheiro que ele julgava suficiente para comprar uma casinha, mesmo que modesta, na periferia de São Paulo.

Depois de um reforçado desjejum, fomos para a estação. Meus tios e avós paternos não estavam presentes para as despedidas. Mas o moleiro e a família estavam. Embarcamos, eu e minha mãe, com mil recomendações do meu pai para que tivéssemos cuidado e, especificamente para mim, para que me comportasse. Não entendi muito essa advertência, mas prometi que seria bonzinho.

O trem, após agudo apito, começou a distanciar-se da plataforma. Ante os meus olhos extasiados, desfilam os belos campos da minha terra natal, que nunca mais veria. O som das rodas do vagão nos trilhos, monótono e repetitivo, pareceu-me uma canção de ninar. E teve, mesmo, esse efeito. Nem a excitação, nem a precoce saudade das pessoas queridas que ficaram para trás, foram suficientes para manter-me desperto. Quando dei por mim, minha mãe me chamava para fazermos baldeação. Já estávamos no Estado do Paraná e eu dormira o dia todo. Foi assim que me despedi da terra natal...


Observação: O conto acima é fruto de uma experiência que venho fazendo, há já algum tempo, com o objetivo de desenvolver um novo estilo de narrar ficção. Misturo dados reais com personagens e situações absolutamente fictícios, o que confere maior verossimilhança (suponho) às narrativas. Verdadeiro, no caso, é o narrador (eu, claro). A narrativa é sempre na primeira pessoa e as características que registro a meu respeito são todas reais, assim como os cenários descritos. Todavia, todos os personagens e situações, reitero, são rigorosamente fictícios, inventados, criados pela minha imaginação, posto que cuidadosamente, para que pareçam verídicos. Este é o caso típico em que se impõe, ao cabo de cada história, este aviso ao leitor: ESTA É UMA OBRA DE FICÇÃO. QUALQUER SEMELHANÇA COM FATOS E PESSOAS REAIS É MERA COINCIDÊNCIA. E creiam-me: de fato é.


Nota do Editor: Pedro J. Bondaczuk é jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk

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