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Opinião
26/03/2021 - 05h59
Entre confissões e fingimentos
Dartagnan da Silva Zanela
 

O muro das aparências pode ser vencido, porém, para que isso ocorra é imprescindível que reconheçamos a sua existência, que identifiquemos a sua presença constante diante de nossas vistas e, principalmente, no âmago de nossa alma, dividindo-nos em compartimentos estanques que se veem imersos em conflitos infindáveis que vão, lentamente, erodindo nossa personalidade.

Não há dúvida que a aparência é um elemento constitutivo da pessoa humana, da nossa pessoa, como também não é mistério algum que as aparências não são um reflexo preciso daquilo que seria o elemento que nos constitui em nossa essência, da mesma forma que a embalagem não é da mesma natureza que o conteúdo do pacote, mas essa, apesar de diversa, necessariamente, acaba por refletir o que há em seu âmago.

Desse modo, penso que não é segredo que a grande encrenca que temos de, muitas vezes, encarar é o fato de que nossa embalagem, nossa aparência, pouca relação tem com aquilo que, fundamentalmente, nos constitui como pessoa, quando não, nos casos mais trágicos, acaba por não ter relação alguma.

As razões que nos levam a esse tipo de impostura são as mais variadas possíveis e, é claro, sempre presumimos que os outros sofrem dessa fraqueza, nunca nós. Pois é. Porém, como havíamos dito no início dessa missiva, o dito cujo do muro das aparências, que habita em nós, pode ser vencido, mas, para tanto, é necessário que reconheçamos a sua existência em nosso coração. E é justamente aí que a mula empaca, porque raramente reconhecemos que nossa vida é fundada em um amontoado de personas junguianas fajutas, digo, alicerçada em uma penca de fingimentos machadianos.

Fingimentos esses que não se encontram junto dos elementos que consideramos secundários em nossa vida. Não. Não me refiro às pequenas mentiras do nosso dia a dia que, algumas vezes, nos livram dum e doutro papelão. Os fingimentos fundamentais estão, juntinhos e devidamente colados, àquilo que temos em mais elevada conta, que consideramos os mais aquilatados valores que, supostamente, norteiam as nossas ações. Por isso não ousamos mexer com eles. Se o fizermos, corremos o risco de desmanchar o nosso castelo de cartas marcadas.

Tais concepções, extremamente elevadas que temos de nós mesmos, com nossas crendices ideológicas e supostamente éticas, ocultam dos outros e, principalmente, de nós mesmos, nossa verdadeira face.

Creio que duas figuras tremendamente ilustrativas, e que nos apresentam um cristalino contraste sobre esse fenômeno, que é o nosso fingimento nada original, sejam Santo Agostinho e Jean-Jacques Rousseau.

O primeiro, em sua obra “Confissões”, confessa perante Deus e diante dos seus leitores, sua irremediável condição de pecador. E reconhecendo a realidade da constituição do seu ser, despindo-se das aparências mundanas e dos fingimentos pessoais, ele procurou descrever a história de sua alma e apresentar um cristalino retrato da natureza humana. Da nossa natureza. Retrato esse que poderia ser resumido nos seguintes termos: nós não prestamos; e é necessário que reconheçamos isso. E se formos capazes de fazê-lo, a Graça abundará em nós e nos auxiliará a nos tornarmos algo melhor do que essa miserável coisinha que somos.

Agora, quanto ao nosso amigo de Genebra, que também escreveu um livro com o título de “As Confissões”, via a si mesmo de uma forma um tanto diferente. Quanto à humanidade, seu olhar também destoa, significativamente, da forma que Agostinho via o ser humano.

Rousseau era o sujeito que, entre outras peripécias, abandonou seus cinco filhos na roda dos rejeitados para poder seguir para Paris. Pois é. E, mesmo assim, ele via a si mesmo como sendo o homem mais bom de toda a Europa.

Por essas e outras que Edmund Burke dizia que o filósofo de Genebra, e seus devotos seguidores, eram pessoas que vertiam lágrimas para dizer que amavam [e amam] a humanidade, os pobres e oprimidos, mas que seriam [e são] incapazes de amar o ser humano de carne e ossos que está ao seu lado. Amam a humanidade com “H” maiúsculo, enquanto ideia, mas não conseguem amar o humano, o tal do próximo, com todos os seus defeitos e incongruências que, muitas das vezes, está diante de suas ventas.

O mundo está cheio de pessoas assim, que se apresentam como fotocópias surradas de Jean-Jacques. Nós muitas vezes somos essa pessoa que diz amar os desvalidos da terra, mas na verdade, não os ama. Apenas disfarçamos o ódio inconfessável que sentimos daqueles que são melhores do que nós, escondendo-nos atrás de bons-mocismos mil e, sob esses simulacros de bondade, conseguimos a façanha de nos vermos como sendo membros da hipotética nata ética e proba do Brasil [só que não].

Enfim, não sei se a hora é agora para iniciarmos essa empreitada de demolição das muralhas dos nossos fingimentos politicamente corretos e socialmente convenientes; não sei se devemos começar hoje a rasgar nossas personas [dissimuladas] e queimá-las na fogueira do arrependimento sincero. Não sei dizer se já seria tarde demais para fazermos isso. Não sei. Mas, uma coisa é certa: melhor tarde do que nunca.


Nota do Editor: Dartagnan da Silva Zanela é professor e ensaísta. Autor dos livros: Sofia Perennis, O Ponto Arquimédico, A Boa Luta, In Foro Conscientiae e Nas Mãos de Cronos - ensaios sociológicos; mantém o site Falsum committit, qui verum tacet.
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