O Doutor Gylson Heraldo Macieira da Cruz, que há poucos dias fez sua passagem para o andar de cima, deixou vasto patrimônio e um invento de valor incalculável, ao qual se dedicou secretamente por mais de cinco décadas. A invenção parecia ser, pelo menos no entendimento do morto, de tal importância histórica que foi enterrada por ele no pasto de uma de suas fazendas, constando em seu testamento a localização exata do esconderijo. Iniciadas as escavações nas coordenadas previstas no documento, em pouco tempo a pá se chocou com o casco de uma espécie de contêiner, guarnecido por camadas sobrepostas de platina e isopor de alta densidade. Uma placa acrílica em vermelho berrante alertava: “Temperatura interior: 179,18 graus centígrados negativos”. Feita a abertura por reconhecimento biométrico das digitais do neto do falecido, inventariante do espólio, uma espessa nuvem terrivelmente gelada imobilizou de imediato o rapaz, o advogado da família e o tabelião do Cartório que o acompanhavam. Recompostos aos poucos do forte choque térmico, deram por fim com uma montanha de pacotes congelados, de formatos variados, cujo levantamento completo demandaria semanas de trabalho. Alguns deles, com os respectivos conteúdos anotados com a letra do Dr. Gylson: Bolinhos de chuva de Comadre Dorinha, esposa de Boanerges, da Estância Boaventura - 1942 Feijoada da tia Neuza Philomena (com carnes e linguiças em cumbucas separadas) - 1935 22 jujubas sortidas, encontradas no chão do Programa Jovem Guarda - 1966 Ponche de baile de debutantes - 1967 Primeira papinha de Neston com banana do meu primogênito Lourenço - 1958 Risoles de carne, coxinha e bolinha de queijo da festa de batizado do Lucas - 1972 Bombom de cereja ao licor Sönksen - 1963 1/2 de copo de caipirinha, servida ao George Harrison na casa do Emerson Fittipaldi, quando da primeira visita do ex-beatle ao Brasil - 1979 1 fatia quase inteira de pizza margheritta deixada no prato pelo Pelé, em rodízio no Grupo Sérgio - 1971 Último bolo mármore feito pela Silvia antes do AVC - 1985 Descongelados alguns dos alimentos, segundo as instruções que o testamento detalhava, as poucas (e felizes) testemunhas que tiveram acesso ao contêiner puderam constatar que todos eles conservavam intactos o frescor, o sabor, a textura e o aroma originais, como se fossem feitos na hora - independente da data de congelamento -, podendo ser consumidos normalmente e sem riscos à saúde. Um fenômeno a desafiar a ciência, já que pouquíssimos alimentos conservam suas propriedades por mais de 12 meses em freezer. O restante do compartimento gelado era ocupado por milhares de itens, entre comidas e bebidas, todos cuidadosamente embalados em plástico filme e etiquetados com minuciosa descrição do conteúdo, dia e horário de armazenagem. Dentre eles, doces de confeitaria, sobras de banquetes oferecidos em posses de presidentes da república, comida de avião, moquecas diversas, biscoito Globo salgado e doce, marias-moles, filés a cavalo, chicletes, quebra-queixo e churrasco grego. Ao fundo do contêiner, uma mensagem escrita em tinta fosforescente: “Finalmente vocês sabem por quais motivos me ausentava tanto da fazenda e porque me trancafiava por dias seguidos no escritório, assim que chegava das viagens. Façam o proveito que bem entenderem do meu invento, se de fato enxergarem alguma serventia nele. Até a eternidade”. Esta é uma obra de ficção.
Nota do Editor: Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário em Campinas (SP), beatlemaníaco empedernido e adora livros e filmes que tratem sobre viagens no tempo. É colaborador do jornal O Municipio, de São João da Boa Vista, e tem coluna em diversas revistas eletrônicas.
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