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SEÇÃO
Crônicas
13/07/2021 - 06h46
Deixe seu currículo aqui
Henrique Fendrich
 

Não conheço essa cidade, não conheço nenhum desses prédios, mas preciso chegar a um deles. Ali existe um lugar que pode me dar um emprego. Não é que eles tenham oferecido alguma vaga, eu estou indo de metido mesmo, metido e desesperado. Imprimo o meu currículo e saio entregando em todo lugar que tenha uma mínima relação com o que faço. Tenho a ilusão de assim ter mais chance do que se simplesmente enviá-lo por e-mail. Andei bastante já por essa cidade estranha, já entreguei meu currículo a vários porteiros, nos lugares em que não me deixam entrar, em outros ouvi que “se a gente precisar, a gente te chama”, mas é claro que não chamarão nunca.

Dou muitas voltas pelo mesmo lugar até descobrir onde é o próximo endereço da lista. Digo na portaria o lugar aonde eu vou, dessa vez não me fazem perguntas, só pegam meus dados, tiram a minha foto e eu subo. Olho ao redor e penso como será andar por ali todos os dias, já que é isso que vai acontecer quando eles me contratarem.

Chego à porta do escritório, que está fechada. Não vejo campainha. Bato. Espero e nada acontece. Bato mais uma vez. Tento escutar alguma movimentação do lado de dentro, mas em vão. Será que não bati com muita força? Bato agora bem forte, é impossível que alguém não tenha ouvido. Entretanto, ninguém vem me atender. Será que é horário de almoço? Mas já passa das duas da tarde. O que devo fazer agora? Foi difícil chegar até aqui, não posso ir embora sem deixar meu currículo. Experimento o trinco da porta. Estou com sorte, não está trancada. Entro.

É uma espécie de sala de recepção. Uma mesa que deve ser a de alguma secretária, mas não há ninguém ali. Olho ao redor. Dois homens trabalhando, voltados para os seus computadores. É para eles que devo me dirigir e dizer “eu gostaria de deixar meu currículo para trabalhar aqui com vocês”. Mas eu hesito, e hesito porque eles não parecem dispostos a falar comigo. Eles sabem muito bem que estou ali, eles se inclinaram levemente para ver quem é que havia entrado, viram que era eu, mas não fizeram nada, voltaram aos seus afazeres como se eu não existisse.

Surge a mulher da limpeza, vinda de alguma sala que não vejo. Carrega um balde, uma vassoura, alguns panos. Também ergue os olhos e me vê ali parado, com certeza pensa “quem é esse?”, mas não fala nada, não faz nada, eu sou invisível também para ela. Volta à limpeza normalmente. Por que ninguém vem perguntar o que eu quero? Meu Deus, o que eu faço? É tão difícil encontrar um emprego. Vocês podiam fazer como os outros, apenas receber o currículo, falar alguma mentirinha para me dar alguma ilusão, e jogar no lixo assim que eu for embora.

De repente, me decido. Vou deixar o currículo em cima da mesa da secretária, se é que é realmente a mesa da secretária, pode ser que seja da própria chefe. Vou deixar e seja o que Deus quiser. Ela vai ver esse papel depois e se perguntar, intrigada, “o que é isso, de quem é esse currículo?”. Os homens trabalhando não vão dizer nada, como não disseram agora, e a mulher vai se livrar daquele papel, porque, afinal, não há vaga nenhuma, e se houvesse prefeririam contratar alguém indicado, não um ser misterioso que deixa o currículo em cima da mesa.

Mas sinto que devo falar alguma coisa, mesmo aos homens e à mulher da limpeza que não prestam atenção em mim, alguma justificativa para a minha vinda e para o que estou prestes a fazer, e então balbucio: “Vou deixar o meu currículo aqui em cima, está bem?”. Ninguém reage, é uma sensação horrível. E a essas pessoas eu quero como meus colegas de trabalho, com elas quero dividir a minha vida profissional, se, por um milagre, por um verdadeiro aborto da natureza, o meu currículo for lido e gostarem do que veem ali. Ah, a quem estou tentando enganar? O meu currículo não será visto, e se virem não será aceito, o meu currículo não é nenhuma maravilha que faça todos correrem atrás de mim, implorando para me contratar.

Deixo o currículo em cima da mesa e saio dali o mais rápido que posso. Sinto-me humilhado. Olho para os prédios ao meu redor. Não sei onde estou. Tiro um papel do bolso, risco um endereço, aquele de onde acabei de sair, e vejo qual é o próximo da lista. Não sei onde fica. Estou cansado. E tudo ainda está longe de terminar.

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