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Opinião
01/10/2022 - 06h19
Elvis e o Diabo
Marco Antonio Spinelli
 

O Rei do Rock teve finalmente uma cinebiografia do tamanho de sua importância. Se você ainda não assistiu, assista. O filme se chama “Elvis”. Não precisa de subtítulo. Os roteiristas transformaram a sua trajetória numa versão moderna do Fausto, de Göethe. Para quem não sabe nada sobre Elvis ou Fausto, calma que vou explicar.

No Fausto, um clássico fundamental da Literatura Germânica, o personagem principal, Fausto, faz um pacto de sangue com Mefistófeles, um demônio decaído na Terra. Nesse pacto, o homem receberia a ajuda desse demônio para realizar todos seus desejos e obter conhecimento absoluto e, em troca, entregaria sua Alma Imortal para o tentador. Fausto obtém a juventude, o poder e a capacidade de triunfar na sua existência humana, mas perde suas duas mulheres amadas, a primeira que num acesso de loucura mata seu filho e a segunda que também o abandona após a morte do seu segundo filho. Fausto perde a sua alma muito antes de morrer e vê a sua juventude ir embora, o seu conhecimento ficar estéril e seu sonho de poder terminar na miséria e no desespero.

No filme de Baz Luhrmann, Elvis também vai vender, inconscientemente, a alma para um demônio decaído, o Coronel Tom Parker, que durante o filme sabemos que não é Coronel, nem Tom, nem Parker. O tal “coronel” enxerga no garoto de Memphis o talento e o potencial para virar um astro e, de fato, como o demônio Mefistófeles, ajuda o garoto a se tornar uma marca, um ícone, um rei no imaginário pop de todo mundo. Elvis queria redimir a sua infância de pobreza e privações. O Coronel Parker transformou o moleque caipira do Rhythm and Blues em um astro contratado pela maior gravadora americana. Foi nesse ponto que a situação mudou de figura. Após o sucesso fulminante, o Coronel Parker passou a fazer de tudo para pasteurizar e domesticar a criação artística e a carreira de Elvis Presley, que o obedecia cegamente. Fez filmes bregas e bobalhóides que eu assistia na Sessão da Tarde quando era garoto. Afastou o artista de sua sensualidade explosiva.

Quando sua carreira no cinema secou, Elvis começou a perceber a perda de sua alma, e começa a tentar se afastar de seu demônio, recuperar sua raiz de cantor de blues de Memphis, Tennessee. Mas o demoníaco coronel fez o que nossos demônios sempre fazem: explorou os medos, corrompeu seus desejos, ofereceu conforto em troca da aventura de explorar novos caminhos e novas criações. Elvis virou um mico drogado fazendo shows no que ele chamou de sua “Gaiola de Ouro”, os hotéis de Las Vegas, como uma espécie de atração de circo permanente. Elvis foi fenecendo até o fim trágico, por provável overdose medicamentosa. No final das contas, tanto Elvis quanto seu demônio, o Coronel Parker, caíram por suas adicções: Elvis de drogas e analgésicos, Parker por seu jogo patológico, torrando sua fortuna nos cassinos.

A tragédia de Fausto, de Göethe como que inaugurou a nossa Modernidade: um homem que vende a sua alma ao poder, ao controle dos instrumentos de nosso mundo decaído, levando à própria ruína e isolamento. Fausto, e Elvis, buscam os prazeres mais intensos e o controle da própria dor, só que a dor não tem controle. Tem como transformar, transmutar a dor que nos constitui, não dá controlar com dinheiro, drogas e o amor das fãs enlouquecidas. Fausto perdeu seus dois filhos, Elvis teve muito pouco contato com sua filha e foi abandonado por sua esposa. Eu costumo dizer a alunos que, ou você dá conta de sua ferida, ou sua ferida dá conta de você. Não há alternativa.
Nossos demônios vivem assoprando que não vamos conseguir, que somos impostores, que não podemos realizar sonhos nem descobrir outros caminhos. Como o Coronel Parker, exploram nossos medos, procuram caminhos conhecidos e não toleram a dor de cometer erros ou enfrentar novos riscos. A acomodação pode parecer uma gaiola de ouro, mas a gaiola aparta a vida.

Disse o poeta que nós somos medo e desejo. Não podemos ser escravos nem de um, nem de outro.


Nota do Editor: Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”.

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