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Crônicas
29/03/2006 - 18h00
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Chico Guil - Agência Carta Maior
 

Não daria certo se me amarrasse com cordas. Pensei demais nas dificuldades e não consegui chegar a uma armação criativa. Estudei todo tipo de arranjo com armaduras, correntes, capacetes, placas de aço, cadeados que me sustentassem suspenso no vão da passarela. Tudo inútil. Como poderia passar mais de dois, três dias, sem água e alimento? Os funcionários da concessionária viriam com serras e soldadores elétricos e logo desmantelariam toda a minha maquinaria. Além do que, dificilmente eu conseguiria um espaço razoável na mídia. Talvez uma nota de rodapé: "Louco se dependura na passarela em protesto contra o pedágio no Paraná". Subtítulo: "Protestante acaba atropelado por carreta desgovernada".

No primeiro mês, em 1998, o sangue ferveu no Centro Sul do Paraná. Pipocavam em todos os jornais protestos contra o aviltamento da Carta Magna. Parecia intolerável que o próprio governo estadual assinasse aquele documento, uma cusparada na Constituição Brasileira. Já na primeira viagem deparei, ali no pé da serra, com aquele monumento símbolo da roubalheira institucionalizada. O neoliberal governador Jaime Lerner e seus executivos ultramodernos haviam conseguido cumprir a principal promessa de campanha: fazer no Paraná um moderno corredor de rodovias. Só não avisaram o preço que teríamos de pagar por esse presente.

O governo emprestou dinheiro, endividou-se, consertou as estradas e entregou a chave a duas ou três privadas. É verdade que elas gastaram por conta própria na construção das moderníssimas estações de pedágios, essas porteiras ofensivas que não me saíam da cabeça enquanto continuava a viagem. Chegando à casa de meus pais, passamos o final de semana falando de pedágio, e aquilo foi cozinhando a minha cabeça, como todos os temas que revelam a covardia do povo, o aviltamento das leis, a violência dos governos, a ditadura dos metidos a besta. Quando fomos chegando de volta à mesma "praça", estacionei junto à cabine do assaltante, desliguei o motor e o farol.

"Não vou pagar", falei.

"Sinto muito, senhor. Se não pagar...".

"Paguei imposto a vida inteira, meu amigo. Meu pai, meus avós e meus tataravós pagaram impostos. Eu já paguei por esta estrada. Ela é minha. Abra essa porteira, faz favor.".

"Eu...".

"Olha aqui, eu sei que você não tem culpa. Mas eu também não tenho. Se não quiser abrir, vou dormir aqui. Se quiserem tragam o guincho. Melhor, tragam a polícia. Me levem preso e toda a minha família junto. Pagar esse negócio eu não pago".

"Então vou ter que chamar o gerente".

"Faz favor".

Nossas garotas já estavam ficando nervosas no banco de trás. Minha mulher não sabia se ria, se chorava, se estava orgulhosa ou envergonhada pelo marido com desvios no sistema nervoso central. Apertou-me a mão com força, assim dizendo que estaria comigo até o fim da terrível jornada.

Chegou o gerente, um moço alto, simpático e forte, um rosto conhecido com um sorriso amigável.

"Ivan! É você o gerente?"

"Pois é, cara. Depois que a gente saiu da faculdade entrei numas. Fui internado, depois casei, tive dois filhos, me separei. Pago quase todo o meu salário em pensão. Tive de parar de beber, de fumar, de cheirar, tudo, parei com tudo. Virei uma merda. Mas como diz um amigo meu, a vantagem é que merda não afunda".

"Sinto muito, Ivan. Mas é lamentável esse negócio aí, trancando a minha passagem. Olha, eu não queria arrumar pra tua cabeça... mas não concordo de jeito nenhum com essa história de ter de pagar por uma coisa que é minha".

"Bom, o que você quer que eu diga? O meu serviço é esse. Mas no seu lugar eu também ia pensar a mesma coisa. Jorge, abra a cancela pra eles".

Meses depois fiquei sabendo que o Ivan, jovem sonhador, abandonou o cheiro de pastilha de freio do pedágio no pé da serra e montou um bar.

Talvez eu não tenha feito grande coisa naquela noite, sendo um entre os milhares de motoristas que passam diariamente pela rodovia. Mas ao menos segui com a consciência tranqüila, como se houvesse acertado pelo menos um pelotaço na testa do monstro.

O arquiteto internacional Airton Cornelsen fez os cálculos e concluiu que cobrando R$ 1,00 a cada trezentos quilômetros de rodovia, uma concessionária teria lucro. Elas cobram aproximadamente R$ 25,00 nesse trecho (em quatro praças). Os milhões retirados a cada mês de milhares de famílias vão para duas ou três famílias! O que elas fazem com todo esse dinheiro?

Percebe-se no caso do pedágio a criminosa concentração de renda (falemos em alto e bom som: o roubo criminoso, violento e sem-vergonha), o absurdo silêncio do judiciário, a estúpida indiferença do legislativo e a concupiscência do governo. Se os governadores e legisladores não estão "levando um por fora" das concessionárias, por que permitem a continuidade dessa bruta pedra anti-eleitoral no meio do caminho? E os juízes, se fossem independentes, por que não bateriam um martelo definitivo sobre esse crime? Não há o que questionar, senhor magistrado: o pedágio é contrário à Carta Magna. Seja homem, macho, ou seja mulher, fêmea, bata o martelo de uma vez e mostre a que veio!

O lado mais opressivo do pedágio, no entanto, transparece na atitude dos lesados. A população está completamente desarmada contra essa afronta. Não há inimigos visíveis a combater. E os formadores de opinião estão convencidos de que a instituição das estradas "pedagiadas" foi uma grande solução apresentada pelo tucanato. Sim, as vias estão melhores. Mas essa é uma visão imediatista e egoísta. Pagar imposto duplicado pode não fazer cócegas no orgulho dos bem-nascidos. Mas a humilhação dos assalariados e pequenos empresários, ou dos que simplesmente acreditam em justiça, já está se tornando uma febre crônica.

Façam o que quiserem os medrosos. Quanto a mim, logo que encontrar a solução adequada, vou dependurar-me na passarela. Por enquanto procuro um advogado para processar a concessionária Caminhos do Paraná, que me rouba (ELA ME ROUBA DEBAIXO DO SOL QUENTE!!!) rouba trinta reais a cada viagem que faço a Curitiba. Vou ao tribunal com um, um único recibo de pedágio, pedir indenização por danos morais e materiais. Quero mostrar ao juiz a simpática mensagem de boa viagem impressa nesse documento: "Obrigado pela preferência".

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