Embora o dicionário de língua portuguesa só registre entrar no mato sem cachorro, não vejo por que, depois de estar lá dentro (sem cachorro, naturalmente), não se possa sair do mato com cachorro. Já ouço alguém alegando que o dicionário trabalha com os fatos da língua, não com os da lógica. Tem lógica. Mas, se tem lógica, meu interlocutor é que não trabalha com os fatos da língua; portanto, em boa lógica, ele não pode me dizer que sair do mato com cachorro não seja um fato da língua; dizer que se fosse um fato da língua estaria no dicionário não tem base empírica; ele mesmo, se eu o animasse um pouco, seria capaz de mencionar vários fatos da língua que não estão no dicionário; palavras da mais alta expressividade que acabam de ganhar foros de cidadania entre os usuários do idioma ainda não estão no dicionário. Se o meu amigo contra-atacar dizendo que um dia lá estarão, terá de admitir que o meu sair do mato com cachorro também poderá estar. Por aí ficaremos ambos no mato sem cachorro, o que só interessa a ele. Claro que ele não é bobo: sim, mas você tem consciência de que se está valendo de uma arbitrariedade, porque sabe muito bem que ninguém sai do mato com cachorro, especialmente se ali entrou sem ele. Parece perfeito. Ele só esquece que se uma pessoa entrou no mato sem cachorro, o único cachorro com o qual ela pode sair não pode ser o cachorro de entrar no mato sem cachorro, pois, logicamente, este não existe. Como não está familiarizado com Aristóteles, ainda não percebeu que o cachorro dele é o não-cachorro, no máximo o cachorro do filho do poeta Rilke, enquanto o meu, aristotélico, tem todas as condições de vir a ser um cachorro real, principalmente se o dicionário parar com esse negócio de que só o que ele registra é fato da língua. Pensando bem, o dicionário não tem nada a ver com isso, pois foi o meu amigo quem fez essa acusação. O que está em jogo é que o mato dele é sem, e o meu é com. Ao trazê-lo para esta crônica, eu o tornei automaticamente um fato da língua, até o momento, pelo menos, um hápax, segundo o Houaiss. O que me impede de dizer, ao livrar-me de uma dificuldade, que saí do mato com cachorro? Acho até bom que isso entre logo na cabeça dele, antes que a gente saia na porrada.
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