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SEÇÃO
Crônicas
31/03/2006 - 07h48
Instinto
Marco Antonio Araújo
 

Estava morta.

O terror não lhe era desconhecido. Na verdade, o acompanhava. Como um pesadelo que se repete obsessivamente, lembrou, de novo, mais uma vez, oh não, o dia em que viu o mar pela primeira vez.

O suor, a tremedeira, a sensação de estar diante de algo infinitamente maior. Pequenez. O primeiro encontro com o pânico.

- Que diabo eu tô fazendo aqui? Não sabia...

Morta. Mar.

Vendo o filete de sangue caminhando pelo rosto da mulher, começou a lembrar: o que mais o incomodou naquele dia foi a impressão de que o mar só tinha movimento quando chegava perto da praia, aquele vai e vem das ondas, lá no fundo perto do horizonte a aparência de gelatina, só as pontas do oceano se mexendo, como rabo de lagartixa que fica pulando, tremendo, se arrastando, apesar de o resto do corpo estar parado num canto da parede, com medo. Imagens confusas, associações estúpidas. Mar, lagartixa, morte.

Dizia sempre que a morte não o assustava, era coisa de deus nosso senhor jesus cristo, então quem acreditava nele não devia ter medo, era coisa boa no fim das contas, estava lá no livro dele, era coisa de dizer amém. Por isso ele não chorou quando morreu a mãe, depois o pai, os irmãos, um, dois, três, quatro, foi de fome, foi de doença, foi de beber, foi bem feito, um desfile diário de cadáveres, era coisa simples, rezar, enterrar, esperar o próximo defunto. Tudo bem.

A única morte que o aterrorizava era a dos pescadores, náufragos, afogados. A falta de ar, a água entrando pela boca, pelo nariz, se debater, não poder gritar nem enfiar a cabeça na parede com força para acabar logo com isso. E sonhava, o mar pra todo lado, encobrindo, aquela sensação de estar envolto em plástico, sufocado. A única morte.

E agora, aquele corpo ali, na posição desajeitada, feia, torta, rabiscada, braços e pernas numa geometria confusa, cabeça caída de um lado, os braços parecendo quebrados, a imobilidade ridícula. O sangue. Sem saber porquê, desejou que os dedos dela se mexessem. As pontas.

Quantos minutos ficou parado, tentando imaginar o que devia ser feito? Fugir, gritar, buscar socorro, esconder o corpo, limpar o sangue, ficar parado?

Ficou parado. Estava morta.

Não lembrava se tinha ou não sido ele o assassino, se foi realmente quem desferiu o golpe, se era mesmo ele que estava ali, parado. Claro que sim mas é claro que não. Não seria a primeira vez. Até fazia questão de anotar direitinho, quantas vezes, locais, motivos. Nomes, se possível. Escrevia tudo com aquela letra difícil, garranchuda, que o envergonhava sempre e que o deixava puto por nunca comprar aquele caderno que ensina a fazer letra redondinha, decente.

- O que é que tô fazendo aqui, porra?

Pergunta imbecil. É claro que foi ele. Era só reparar no corte profundo no pescoço, facada certeira, slap, do jeitinho que ele gosta. Sem grito. Só um borbulhar, o gemido engolfado em sangue, quanto sangue, não pára nunca.

Fugir, mas é claro.

O corredor do prédio, que estranho, nunca viu, não lembra de ter entrado. Onde é a saída, elevador, escada, ficar parado? Degraus que não acabam, por que eu tô correndo?, calma, relaxa, fica frio, devagar, balança a cabeça pra esse sujeito que você nunca viu, faz de conta que é bom dia, mas que horas são, afinal?, e se for boa noite, e se for madrugada, esse cara vai estranhar e vai guardar meu rosto, vai se lembrar de mim que nem aquele filho da puta daquela vez que me ferrou, eu devia ter matado ele, eu vou matar esse cara.

- Ei, que horas são?

- Duas e meia.

- Manhã ou tarde?

- Como?

Slap.

É bonito quando o golpe sai assim, certinho, na garganta, não é mesmo? Mas quanta burrice: claro que são duas da tarde, olha só os óculos escuros no bolso do paletó, a mala de couro, o suor na testa, deve estar sol lá fora, ele estava com pressa, sorriu pra você, nem reparou no seu nervosismo, em como você é feio e mal vestido. Devia ser um cara legal, bem de vida mas boa praça. Sangue. A camisa branca. O paletó azul marinho. Vermelho. Tontura. Amarelo. Azul marinho. Azul. O mar.

Esse barulho de ondas! Deve ser a porta do elevador se fechando, o eco no poço. Precisa limpar a faca de novo, o sangue, vermelho, não pode escorrer, nem manchar, o sangue, no paletó, azul, vermelho no azul. A faca, no mar. As ondas. As pontas. Enjôo, tontura, o ar, cadê o ar, o ar? Gritar, não pode.

Estava morto.

- Não posso esquecer de anotar.


Nota do Editor: Marco Antonio Araújo é jornalista, ex-professor e coordenador de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero. Trabalhou nos jornais A Voz da Unidade, do PCB; A Gazeta Esportiva, onde foi diretor de redação e criou as revistas Educação, Língua Portuguesa, Fera! e Ensino Superior.

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