Uma boa música sempre pode nos inspirar a realizarmos inúmeras coisas, inclusive uma boa reflexão existencial. Dentre as canções populares que me agrada e me diverte, destacaria com muito gosto, uma de Zéca Baleiro, que no caso seria a canção “Heavy Metal do Senhor”. Ela é divertida, mas há um de seus versos que sempre me convidam a pensar em algo mais profundo que o riso de uma boa ocasião. O verso em questão seria esse que canta que Deus estaria: “[...] no Céu com os Santos que um dia foram homens de pecado”. Quanto ouço a melodia desta música a embalar os seus versos a primeira imagem que vem a minha mente é a de Deus Pai como uma alegre criança rodeada de infantes, inocentes. Quanto aos Santos, a imagem é mais clara ainda: Sto. Agostinho, o Bispo de Hipona que viveu diante da decadência do Império Romano. O mais sincero dos homens Santos a meu ver. Antes de sua conversão, Agostinho era um homem de muitíssimos pecados, como todos nós. Pecados morais e carnais de todos os gêneros e gostos, pecados esses, que não são de modo algum ocultos dos fiéis para maquilar uma suposta santidade, visto o fato que o mesmo os confessou a todos, publicamente, para todos aqueles que quiserem conhecê-los, para que em qualquer tempo que fosse soubessem quem foi Agostinho em sua grandeza e pequeneza, bastando que, para isso, leiamos a sua obra “As Confissões”. Mas, caberia aqui a indagação que segue: o fato de ele ter sido literalmente um libertino em sua juventude e parte de sua maturidade diminui a sua Santidade? Ao nosso ver, de modo algum, visto que, pelo que sabemos, não há uma idade “correta” para nos encontrarmos com Aquele que É. Ou há? E, pelo que sabemos, dentro da doutrina Cristã, todos nascemos com pecados, inclusive todos os Santos que, diferente de nós, e principalmente deste mané que vos escreve, procuraram viver pela vereda da retidão, não é mesmo? O próprio sábio de Hipona reflete sobre essa questiúncula em sua obra “A Cidade Deus” onde o mesmo afirma-nos que Deus não tem começo e muito menos fim e, deste modo, não existe dentro das dimensões temporais e espaciais em que nós existimos, mas sim, além delas. Deste modo, como determinar que Aquele que É Eterno tenha uma data apropriada para revelar-se a seres contingentes como nós? Alias, quem somos para determinarmos isso? Podemos também nos indagar sobre a forma como o Sapientíssimo viria a revelar-se a nós, que somos finitos, sendo que Ele É Infinito? Nosso corpo, sim, é finito, não a nossa alma, e é à ela que Ele faz-se desvelar das mais variadas e misteriosas formas, do mesmo modo, que das mais variadas formas, o mundo a nossa volta tenta nos agrilhoar as dimensões finitas e momentâneas que a vida carnal tem a nos ofertar e que, diga-se de passagem, são tão múltiplas quanto as formas que o Senhor se faz revelar a nós, visto que os desvio-os são múltiplos e a Verdade, por sua deixa, É Una. Refletindo por essa vereda, podemos também averiguar que não seria o formalismo emplumado que certificaria que estaríamos em comunhão com Javé, visto o fato que uma cerimônia ou um rito só tem realmente significado quando realmente toca a nossa alma, o âmago de nosso ser. Entretanto, quando isso não ocorre, apenas dissimulamos uma realidade que não encontra correspondência no reflexo de nossos olhos que se fazem desfilar em um simulacro da realidade, como legítimos “santos do pau oco”: pios e áureos por fora e corrompidos por dentro. No caso de Agostinho, vemos um homem sem medo de afirmar as suas limitações, de afirmar a sua humanidade, pois, é na afirmação de nossa insignificância e tão só nela, que nos encontramos com a grandeza da Santidade já que é nela que o Verbo, a Verdade, se faz revelar e a nos libertar. Doravante, como bem nos aponta o filósofo Nicola Abbagnano: “[...] o Ser que se revela e fala ao homem, o Ser que é a Palavra e Razão iluminante, é Deus no seu Logos ou Verbo. A verdade não é, pois, mais que o Logos ou Verbo de Deus. [...] enquanto o homem procura Deus na interioridade da sua CONSCIÊNCIA, Deus é para ele Ser e Verdade, Transcendência e Revelação, Pai e Logos. Deus revela-se como transcendência ao homem que incessantemente e amorosamente o procura na profundidade do seu eu: isto quer dizer que Ele não é ser senão enquanto é conjuntamente manifestação de si como tal, isto é, Verdade, que não é transcendência senão enquanto é conjuntamente revelação; que não é Pai senão enquanto é conjuntamente Filho, Logos ou Verbo que se acerca do homem para o trazer a si”. Por isso, não nos prendamos tanto aos formalismos criados pelos homens, pois Ele, é sutil e nos cerca a todo o momento para nos libertar de nossa letargia existencial desde que, estejamos realmente pré-dispostos a nos encontrarmos com seu Verbo indizível que se faz parábola através de nossas imperfeitas letras. Tente seguir pela senda apontada pelo libertino que se tornou Santo, que abriu o seu coração à Verdade por nunca ter negado a sua humanidade. Não neguemos as nossas falhas, tenhamos sim, a coragem que Agostinho teve de confessá-las. Coragem essa que, confesso, não tenho, mas que, espero, um dia ter.
Nota do Editor: Dartagnan da Silva Zanela é professor e ensaísta. Autor dos livros: Sofia Perennis, O Ponto Arquimédico, A Boa Luta, In Foro Conscientiae e Nas Mãos de Cronos - ensaios sociológicos; mantém o site Falsum committit, qui verum tacet.
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