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Crônicas
05/04/2006 - 07h58
Deixem-me ao menos chorar
Chico Guil - Agência Carta Maior
 

Rubens chega no sábado à tarde, após o café. Não come carne, nem bebe leite, não pesca tampouco, porque os peixes também possuem consciência, embora "menos desenvolvida que a dos pássaros, por exemplo".

Gastamos a tarde falando de Londres, que ele deixou há poucos meses porque precisava cumprir um ritual no Brasil, o de defrontar-se consigo mesmo e com seus medos ancestrais. A psicanálise está ajudando-o a compreender que precisa abandonar-se um pouco ao mundo "real", deixar de lado as teorias e sentir na língua o gosto da fruta.

Percebo que Rubens anda cuidando do corpo, inclusive arrumou uma namorada. Dá aulas de química num cursinho e começa a comprar alguns bons produtos de consumo, como uma moto trail 250 cc, mas ainda discute Lacan, Sartre e Fórum Social Mundial. Finalmente descobriu que as ações revolucionárias são inócuas a curto e médio prazo, mas "o sentimento revolucionário deve ser pensado no contexto histórico", ao longo dos séculos e milênios.

Talvez meu amigo adquira um automóvel zero quilômetro nos próximos meses, quem sabe uma casa, talvez ele case, torne-se um empresário respeitável, mas nada poderá raspar de sua testa o "sinal de Caim", como dizia Hermann Hesse em seu Demian. O sinal visível somente nas almas depuradas, marca de um sentimento incorruptível.

"Saí da política porque acho que não é por aí", diz Rubens, ajudando-me a dar fim a uns restos de coco que encontrei na geladeira. Militava num partido da esquerda, mas o partido partiu-se à esquerda e à direita. A falta de esperança no futuro próximo dá-lhe uma espécie de febre, que Rubens combate discutindo com a psicanalista sanguessuga, no encontro semanal. "Me leva setenta reais a cada sessão, mas se não gastar com ela, que vou fazer com o meu salário?".

Aprofundando-se na história pessoal, o paciente descobre que a vida está contida num século, talvez com alguns anos de bônus caso a Natureza haja-lhe proporcionado algum gene mutante. Mas ainda que fossem dois séculos, teria de confrontar suas expectativas pessoais aos anseios da Humanidade, que no centro da oscilante inteligência conhece-se como ponta de lança da sabedoria universal.

"Não tenho consolo, e talvez nem deva procurar", diz Rubens. "Um amigo lá de Porto Alegre me convidou para uma igreja, mas não acho que deva experimentar esse ópio. Prefiro pensar que é aqui, que é esta a minha história, e se tenho algo a fazer é cuidar da minha flor, que ela possa crescer, e que se torne exuberante como deveria ser. E que depois ela desapareça, que importa, se ela chegar mesmo a essa exuberância? Não é isso que todos fazem? Quando o milionário constrói um arranha-céu, quando o burguês dá uma festa, quando o imperador vai lá e destrói uma cidade, não está dizendo ’olha como é linda a minha flor’?".

A revolução permanece viva nos olhos de Rubens, tênue raio de luz no profundo cristalino. Talvez preferiria viver no tempo das espadas, olhar de frente o Grande Ditador e partir para cima gritando "liberdade!". Mas os ditadores modernos estão bem protegidos e disfarçados por trás das gravatas negras e seus impérios cumprem normas sociais e ambientais. Nos campos um mesmo número de escravos, com enxada ou teclado na mão, tomba exaurido pela marcha do dia, e é esse peso que arca as costas de Rubens, enquanto dirige sua motocicleta de volta para casa.

As revoluções acabaram depois que os revolucionários tornaram-se escravos de seus símbolos de liberdade.

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