O espelho a minha frente não me esconde de mim. Espelha-me em traços, curvas, luzes, sombras. No fundo, só luz. Atrás do espelho não há nada, só escuridão. Não um não-eu, apenas nada. Olhando-me assim de perto em rugas de indignação dá pra acreditar que não sou? Não sou ali que vejo, pois, se fosse, já não veria. Onde estou? Na pessoa que vê ou na pessoa que é vista? Deve ser por essas e outras que encontro-me aqui, numa ante-sala de analista. Desço as escadas correndo. Vou jorrando pelo espaço essa matéria de mim tão derradeira. Vômito e sangue não são coisas substanciais? Não estou sangrando? Como posso não saber se sou? As pessoas na rua não param ao me ver passando. Cabeças baixas, penso onde se encontram. Nenhuma casa habitada sequer. Há solidão pior que essa? A penumbra escorre pelos becos abafando sombras. Tudo parece ir para algum lugar. Tento seguir esse curso natural. Mas não consigo. Se sigo as sombras elas me chamam para baixo, para o buraco dos bueiros, para os esgotos, para lugares submersos. Eu abomino a viscosidade que parece pulsar no debaixo de tudo. Eu abomino a viscosidade que há dentro de mim. Queria ver cada célula se desprendendo e me desfazendo. Só pra ver o que sobra de mim para eu ser. Terminada a sessão, o profissional de almas olha-me com perplexa familiaridade. É grave? Tem cura? Estou ficando maluca? Talvez. E deixa a palavra assim, tamborilando na minha cabeça. Enquanto houver talvez existirá sim e existirá não. O que me causa uma tremenda angústia de ter de navegar entre os dois. O não tem sabor de ventania e pra isso eu preciso estar leve. Peso-me em minha consciência e ainda não consegui a medida. Decidir é isso? Há escolha no inexorável? Resignada, enfio-me debaixo das cobertas e entro cuidadosamente dentro do meu corpo sem fazer ruído. Sinto a cola das células me prendendo. Meus olhos abrem-se mais uma vez ao sim.
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