Um cachorro morto na esquina estraga o cheiro de dia amanhecido. Por enquanto apenas o meu nariz sofre. Daqui por diante é caminho de terra, os pés afundam no barro apodrecido. O lugar fica um pouquinho depois do fim do mundo, quase próximo do porto da barca do inferno. Falando em inferno, começamos a avistar os barracos de lona preta. Meu objetivo ali era claro: fazer um levantamento das famílias que estavam acampadas, quantidade de crianças, condições de higiene, saúde, enfim, levava uns formulários pra preencher com esses dados. Ele era o líder da associação dos sem-casa, tinha o rosto empipocado e várias cicatrizes nas mãos e braços. Olhava-me nos olhos, o que quase me congelava de constrangimento, eu me sentia uma invasora daquelas terras de ninguém. Mindoim parecia me odiar. Eu tinha cara de burguês que procura a favela em busca de emoções, depois de tanto ficar bocejando de tédio diante de sua tevê 29 polegadas. Ele não estava de todo errado. Eu nem sabia ao certo o que me fizera aceitar aquela tarefa. Não gosto de ficar me torturando com cenas tristes. Acho que minha solidariedade mais parece comprimido pra dor de consciência. Entretanto, mesmo assim era bem-vinda. Aliás, quando se rompe a barreira da miséria, as migalhas se parecem muito com pérolas. As cenas que vejo ali não fogem à regra dos documentários sobre a tragédia brasileira. Velhinhos doentes com suas feridas expostas, crianças desnutridas brigando pelas tetas da mãe, um ou outro cachorro pele e osso também à caça de sobrevivência. Moscas e mais moscas rondando os infortúnios. Tento não me identificar, fingir que aquelas cenas não abalam meu emocional. É difícil, quando alguma lágrima tenta pular das pálpebras, disfarço para não parecer tola. Não quero que sintam que tenho pena deles. Começo a bocejar sem parar para disfarçar o marejar dos olhos. Mindoim me encara e me alfineta. “Nossa, como boceja essa moça, parece entediada. Aqui ninguém morre de tédio, só de bala, de fome ou de tétano“. Peço desculpas e digo que apenas dormi mal à noite, o que me provoca outro desconforto ao olhar os colchonetes úmidos e esburacados em que dorme aquela gente. Uma senhora tem o olhar perdido e não responde a nenhuma das perguntas que faço. Tento em vão descobrir quantos anos tem, quantas feridas, quantas cicatrizes. Diante de seu silêncio, entendo que nada daquilo importa. Quantos filhos, se teve marido, se está doente. Seus olhos se cansaram de tanta dor, sua boca fez silêncio eterno. O que ela contempla com seu olhar perdido, só podem saber aqueles que atingiram certos limites de sofrimento. Todos ali escondem uma história sob sua desgraça presente. Algumas, apesar de tudo, até sonhos têm. Acreditam que alguém vai lançar a corda para tirá-las do precipício. Eu espero que sim. Eu espero sinceramente que sim. Despeço-me pedindo perdão por ser uma pessoa com uma vida normal. Sinto-me envergonhada por ter um teto para morar, comida, assistência médica e outras regalias. Pra piorar as coisas, uma menininha com cara de anjo sujo toca em minhas mãos e diz: “Tia, quando eu crescer quero ser que nem a senhora”. Ela nem sabe o quanto acho minha vida medíocre. Quando chego em casa, como que recobrada de um pesadelo, aspiro o ar de minha realidade macia. Tento sentir alívio, mas não consigo: o mau cheiro impregnou as minhas entranhas.
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