O Sol ardia sobre as manchetes do "Notícias Populares", sanguinolento, suspenso na banca de revistas e jornais de frente o Café Central, no centro de Goiânia. Como era de praxe, Dionísio passava por ali, infalivelmente, à uma hora da tarde, após bater o ponto na repartição pública. A mordomia, com implantação, pelo governo, da jornada de 8 horas diárias de trabalho, só era possível devido às costas largas do pistolão que lhe arrumara aquela sinecura, depois que Dionísio fora demitido do jornal onde trabalhava. Em meio à pequena multidão que sempre se forma diante dos periódicos, Dionísio passou rapidamente a vista pelas manchetes dos principais jornais diários do País, e em seguida resolveu "bater ponto" no Café Central, como fazia costumeiramente. De costas para a rua, sentado na primeira bancada do balcão à direita do bar-lanchonete, nem se deu conta da entrada no recinto daquela que mais tarde seria a sua perdição. Dirigindo-se ao garçom, que já sabia o gosto do freguês. - Um domus e uma geladinha, por favor! Alheio ao entra-e-sai da verdadeira fauna humana que habita o local - pseudos-latifundiários e cowboys do asfalto, trambiqueiros, estelionatários, proxenetas, garotas de programa, pedintes e vendedores de relógios importados do Paraguai -, o nosso barnabé, naquela tarde mais angustiado do que o goleiro na hora do pênalti, vai folheando desinteressadamente a sua revista semanal, ao mesmo tempo em que dava vazão à sua verve de poeta de boteco frustrado, entre um gole e outro de cerveja - o conhaque já consumira a la cowboy. "No bar, o princípio de tudo. / Bar carnal / barco anal / Por cujo canal navega o prepúcio / Vestido numa camisa-de-vênus perfumada / No seu vai e vem normal / como ondas espumantes / Na praia virgem inexplorada daquele Triângulo das Bermudas." A sereia loira, propositalmente ou não, senta-se no banco oposto ao seu, insinuante. Menos pela sua fisionomia de cadela faminta e silhueta de manequim, esquálida, ou pelos seios volumosos e lábios finos, o que mais lhe chamou a atenção foi aquele flerte de olhos esverdeados e os cabelos lisos, finos como plumas. - Tem fogo? - Indagou, com o cigarro entre os dentes levemente manchados de batom vermelho. Embora não fumasse, ele saca rapidamente a binga que trazia sempre no bolso da camisa xadreza - justamente para não dar vexame em circunstâncias como aquela -, acende, trêmulo, o cigarro da moça e, tímido, volta à sua leitura. Um olhar de rabo de olho nela e outro desalentado na coluna "A Semana" da revista, vai alimentando a sua vaidade de barnabé de libido reprimida. Toma mais um gole, para criar coragem de assediá-la, levanta-se, tentando conter as pernas trêmulas, mas o bulbo já afetado e o bojo avantajado, denunciam o seu avançado estado etílico. Dirige-se para o rumo dela, com a cabeça já meio zonza. Encabulado, resolve primeiro ir tirar a água do joelho, passando rente à siriema indiferente, de uma indiferença dissimulada. Ao voltar do mictório, a loira de pernas finas já havia partido. O gaiato ao lado, que a tudo observara, em seus mínimos detalhes, resolve meter o seu bedelho. - Cochilou, o cachimbo caiu! Dionísio não deu resposta, fingindo que não era com ele. Do alto do seu convencimento e para esconder a decepção mal-disfarçada, o barnabé dá de ombros, como se não lamentasse a perda, mas o pensamento traiçoeiro, não tirava a imagem da moça loira de pernas finas de sua cabeça: "Também não é assim nenhuma Carla Perez!" Olhar voltado novamente para a banca de revistas, ele não percebe o retorno de Cléo - esse o nome da loira misteriosa, que descobriria somente agora. Alheia ao bafo de onça que exalava da boca de Dionísio, finalmente ela resolve dizer ao que veio e não tarda a fazer a proposta indecente, aceita de imediato por ele. Dirigem-se ao ponto de táxi em frente, cujo motorista, como que adivinhando o destino previsível, gira a plaqueta da bandeira 2, e segue as coordenadas da garota de programa. Vinte minutos depois, o carro pára em frente ao suntuoso Parthenon, mistura de arquitetura greco-romana com ambiente interno pós-moderno. No amplo salão de pilastras grossas e arredondas, a pista de dança, com o globo de luzes cristalinas, girava ao ritmo da canção romântica, convidando os casais de rosto coladinhos ao prazer eterno. No pub inglês, meia dúzia de Dianas doidivanas à procura de Mr. Good-Bar. Da sacada dava para visualizar o néon vermelho com a inscrição: "Ballantin’s". Ao invés do scotch escocês legítimo, Dionísio e Cléo resolvem, porém, pedir uma garrafa de Forrestier tinto, antes de irem se enroscar no lençol macio de seda pura chinesa, engomado e esticado no colchão de água arredondado. Enquanto Cleópatra e Dionísio se consumiam no seu ninho de amor, explodia no rádio o som de Raulzito: "Minha cobra quer comer a sua aranha". Perdido nos braços e abraços de Cleópatra, que com sua boca rubra de vinho tinto acariciava a cobra tesa de língua ferina, expelindo o seu veneno gosmento, sêmen da vida e da morte, Dionísio se desvanecia. Depois daquele frenético vai-vem, Dionísio, olhos lânguidos de peixe-morto, é transportado para o Olimpo, sem noção de tempo e lugar. E sem saber que Penélope, fidelíssima, empreendia incansável busca pelo Hospital de Urgências, Delegacias de Polícia e Instituto Médico Legal à procura de seu Ulisses adúltero. Cleópatra, por sua vez, acende o cigarro retirado de um estojo dourado, em cuja tampa a efígie de uma cobra se enrosca numa pirâmide. As duas noites de bacanal, de Baco no anal, só são interrompidas com a chegada do cunhado de Dionísio, que, qual Sancho Pança desgarrado, veio em seu socorro, com um cheque borrachudo nas mãos, assinatura ininteligível, que fora emitido em favor do taxista. Direito romano evocado, ele dá o veredicto: "Divórcio à vista!" Nota do Editor: Beto Leão é jornalista.
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