Mário Lago e Ataulfo Alves interpretaram o sentimento de muitos homens de sua geração quando compuseram Amélia. Isto ocorreu em 1941, numa época muito significativa: ditadura no Brasil, ascensão do nazifascismo na Europa. Mas, de início, a composição passou despercebida, tanto que nenhum cantor queria gravá-la - o próprio Ataulfo teve de fazê-lo. Aos poucos, porém, Amélia foi se popularizando e, lá pelas tantas, já não era uma música, era um estado de espírito. Que ainda hoje, 55 anos depois, nos faz pensar.

A letra tem duas partes distintas. Na primeira, um homem dirige-se a uma anônima mulher em tom queixoso: "Nunca vi fazer tanta exigência / nem fazer o que você me faz / você não sabe o que é consciência / não vê que eu sou um pobre rapaz? / Você só pensa em luxo e riqueza / tudo o que você vê, você quer". Ele está nos denunciando, portanto, uma consumista feroz, dessas que não saem das lojas e que, não tendo consciência, fazem da compra o propósito maior da vida. Agora: por que este homem tem de agüentar essas coisas? A resposta ele próprio nos dá: é um pobre rapaz. Pobre no duplo sentido: não tem grana e é, emocionalmente falando, um desamparado.

Mas este pobre coitado já foi feliz. Isto quando viveu com a Amélia do título. O nome em si é significativo. Amélia, que é uma variação de Amália, é uma palavra gótica; significa trabalhadora, mulher ativa. Numa outra interpretação, Amélia viria do francês Amélie, sofredora, triste. Notem que os dois significados não se excluem. Há algumas Amélias famosas na história. Uma delas, de quem certamente Mário e Ataulfo ouviram falar, foi a norte-america Amelia Earhart, a primeira mulher a pilotar um avião através do Atlântico, em 1932.

Finalmente examinem o nome em si mesmo. Amélia contem a palavra "ame" e a palavra "mel". Termina com este nostálgico "ia", denotar de um passado imperfeito - ou, no caso do anônimo narrador da história, de um passado que era mais que perfeito, um passado do qual ele tem muita saudade.

Amélia. "Aquilo, sim, é que era mulher." Um elogio? Em termos. Convenhamos, "aquilo" serve mais para designar um objeto do que para falar de um ser humano. Agora: por que, mesmo, o elogio? Porque Amélia passava fome ao lado do seu homem, porque achava bonito não ter o que comer; e porque, quando o via contrariado, perguntava simplesmente: "Meu filho, o que se há de fazer?".

Uma resignada, portanto. Mais que isto, até. Observem o tratamento que ela dá ao companheiro: meu filho. Uma figura maternal, perfeita para nutrir (mesmo na ausência de comida, ou principalmente na ausência de comida) fantasias edípicas. Finalmente, ficamos sabendo que "Amélia não tinha a menor vaidade" e que "era mulher de verdade". Será mesmo? Será que não ter qualquer vaidade faz de alguém uma pessoa de verdade? Um pouco de vaidade é essencial para a auto-estima. E, por outro lado, sem um mínimo de auto-estima não podemos estimar ninguém. Podemos, sim, abrir mão de nossa individualidade, de nossas aspirações, e de fato, na cultura brasileira, Amélia, que não chega a ser um nome que condiciona destinos, é, contudo, sinônimo de mulher submissa.

Uma contradição, portanto. Porque a verdade, gente, nunca é submissa, mesmo que assim o queiram os machistas desconsolados, mesmo que assim o diga a letra de uma famosa composição.