Isso foi no começo dos anos 80. Na época, havia muitas ruas sem pavimentação no Guarujá. Ninguém falava em Maresias, e Santos é que era um lugar de velhos cafonas. O Guarujá era, ainda, um programa muito bem aceito, e as famílias com certa condição, sobretudo as de São Paulo, procuravam ao menos conhecer a "Pérola do Atlântico". Minha família foi uma dessas. Meu pai alugou uma casa para temporada, numa rua de terra batida, a partir da qual se chegava de carro à praia em poucos minutos. Tratava-se de uma grande ocasião e, por isso, muitas pessoas foram convidadas. Tios, avós, primos e agregados, uma pequena corte de bairro apresentou-se no Guarujá. Algumas pessoas chegaram conosco, outras depois. Algumas iam, ficavam um ou dois dias, voltavam a São Paulo a trabalho e depois reapareciam, causando grande sensação. Ao longo de toda a temporada, circularam entre vinte e trinta pessoas pela casa, na realidade um sobrado que acomodou até que com dignidade três gerações de uma família paulistana mais do que provável: meus quatro avós tinham origem italiana. Deles, apenas três puderam comparecer; meu pai ficara órfão de mãe aos nove anos. Muitas das crianças e alguns dos adultos viram o mar pela primeira vez naquela viajem. Foram dias cheios. Chovia muito e pouco pudemos ir à praia, mas a casa tinha piscina e descobriu-se o siri. Comia-se siri predatoriamente. Paneladas de siri surgiam de todos os lados. Os siris chegavam vivos e um deles foi parar na piscina. Jogou-se muito baralho, e meu austero avô materno chegou a fumar um cigarro. Foi uma coisa muito solene. Houve pontos baixos também. Televisionou-se uma derrota do Palmeiras para uma equipe menor. Contudo, no geral, a coisa ia bastante bem e a aventura ia atendendo às melhores expectativas de meu pai, que só se perturbava com uma ou outra pequena confusão armada pelo pai dele, meu avô que não era austero. O velho vinha mal de saúde há tempos, e esperava-se que algumas semanas ao lado do mar pudessem lhe fazer bem. Ao que tudo indica, ele tinha opinião diferente. Não que tivesse qualquer queixa quanto ao mar. Mas estava proibido de fumar e beber, e deveria passar a maior parte do tempo atrelado a um tubo que lhe facilitaria a respiração. Era um aparelho enorme e aterrorizante, possuía registro e era encimado por uma espécie de medidor, e meu avô o desprezava de todo o coração. Usava-o muitíssimo menos do que o recomendado, bebia muitíssimo mais do que a disfarçada tolerância de seu filho permitia e, para completar, vivia com um cigarro na boca. Os cigarros eram um caso a ser estudado. Surgiam sabe-se lá de onde, já que submetiam tanto o velho como sua bagagem às mais rígidas e periódicas revistas. A todo o momento meu pai e minha tia passavam-lhe descomposturas pelo desleixo com o tubo, tomavam-lhe o maço de cigarros e fingiam ignorar o copo de uísque que, com estudado descaso, repousava na mesa sobre qual se via um sempre inacabado jogo de paciência. Passados poucos minutos, ele chamava a mim ou a um de meus irmãos e, com ares marotos de cumplicidade, nos revelava onde obter-lhe outro maço. Eles escondiam-se nos mais óbvios e mais surpreendentes lugares; às vezes, recebíamos indicação para pegá-los embaixo do colchão, junto ao estrado; em outras poderiam ser encontrados no meio de um monte de roupas sujas, e chegaram a aparecer mesmo entre as minhas roupas de criança. Esse mau comportamento ia pontuando os dias e, sobretudo, as noites. Conferiam qualquer coisa previsível ao cotidiano irresponsável de nossas férias no Guarujá. A maioria das pessoas ali não levava a coisa muito a sério, exceção feita às mulheres que, por hábito, se não arrumarem alguma preocupação dessa ordem, podem pôr tudo a perder. Eram sempre mulheres que iam alertar meu pai acerca das negligências de meu avô. "Seu pai ainda não usou o Oxigênio hoje", "Seu pai está já no décimo cigarro", "Seu pai está entornando um atrás do outro", "Seu pai está ensinando baralho às crianças" e o não menos pusilânime "A nós ele não obedece". Meu pai então interrompia qualquer coisa interessante que ia fazendo para ir interromper qualquer coisa agradável com a qual meu avô estivesse se entretendo. Uma pequena dança, nada importante, mas à qual se deve o fato de a viagem ter se tornado, sob muitos aspectos, inesquecível. Ocorreu algo mais ou menos assim: a situação se esgotara, e não era mais possível sustentar, dia a dia, uma rotina de transgressões e pitos entre dois homens feitos e que se conheciam. Alguém tinha que pôr fim àquilo, pois havia muitas formas diferentes de se comer siri e muitas partidas de tranca e cacheta que ainda não haviam sido trazidas à luz, e tudo isso era posto em risco a cada pequeno atrito. Meu avô, um notívago pertencente a uma linhagem ancestral de notívagos ancestrais, certo dia resolveu afundar um pouco mais, madrugada adentro, uma pequena sessão de paciência, álcool, tabaco e, numa solução verdadeiramente salomônica, Oxigênio. Não compreendendo o engenho quase genial da coisa, as mulheres alarmaram-se para valer diante daquele quadro meio que saído de um sonho em sépia: numa pequena mesa redonda, cercado por restos mortais de inúmeros siris, dedos engordurados por molho apimentado e surpreendentemente rápidos no manejo de um baralho teimoso que se recusava a ceder o final de uma paciência, sob escassa iluminação agia meu avô, cigarro aceso no cinzeiro, copo de uísque em punho, máscara de Oxigênio a pleno vapor. Os instrumentos eram movidos com temível habilidade, cigarro e uísque muitas vezes na mesma mão, cartas girando sob o controle preciso da restante que, em certos momentos, trabalhava para levantar a máscara e permitir ora um gole, ora um trago. Uma cena infernal. Foi então que, no meio daquela noite sinuosa, despertaram meu pai com grande alarido, a fim de que ele tomasse as rédeas da inacreditável situação. Ainda confuso e incrédulo, meu pai fez descer pelas escadas seu imenso e poderoso corpanzil e, antes mesmo de concluir os últimos lances, viu que era tudo verdade. Berrou então, com um tom pastoso de recém acordado com o qual ele mesmo espantou-se: "Puta que o pariu pai, que merda é essa? Fumando e bebendo e usando essa porra de tubo? Fumando do lado do tubo? Quer explodir a casa, puta merda?". Após breve intervalo e não sem sincera consternação, o velho homem desceu o copo de uísque e levou a mão à enorme testa que era toda longas rugas e suor, exclamando rouco "Filho, é verdade, eu não sei onde é que é que eu estava com a cabeça!". Um silêncio que selava a paz desceu sobre a casa. A fim de consumá-lo de uma vez por todas, meu avô fez girar o tronco lentamente, sem pressa, extraindo tudo o que podia daquele corpo outrora capaz de desferir violentas cabeçadas em bate-bolas na praia, de cortejar e perseguir mais mulheres do que a decência permitiria enumerar, de ingerir, processar e se livrar de quantidades açúdicas de boa bebida, mas que agora se prestava somente ao desejo frugal de um cigarro, um uísque e uma paciência interminável, e - agora não sem certo deboche - desligou o Oxigênio. Nota do Editor: André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.
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