Depois de instantes, que pareciam eternos, mirando esta tela em branco, me veio a idéia do título. Suprema infração: pensar num título antes de ter dado cabo de pelo menos uma terça parte do texto que me proponho escrever. Consola-me a revelação de João Ubaldo Ribeiro, que afirmou começar sempre pelo título todo e qualquer livro da sua já vasta lavra literária, e a partir do título, então, desenvolver o seu arrazoado que, invariavelmente, cativa o leitor. Cometida uma primeira infração, nada mais fácil do que incorrer numa segunda, explicando a fonte de inspiração do título. Trata-se de uns versos de Manuel Bandeira: "Meu amor / me ensinou / a ser simples / como um largo de igreja". Lidos e assimilados, nunca mais me saíram da cabeça, como um hino perfeito às coisas simples da vida e à própria simplicidade. E simplicidade é o que me ocorreu quando eu a vi pela primeira vez. Foi num elevador de uma grande agência bancária, no centro de Aracaju. Ela sorria de uma forma efusiva e sincera, e sorrindo assim era o mais puro contraste com a sisudez e a tensão estampadas no rosto dos demais ocupantes daquele cubículo claustrofóbico. Uma ascensorista, de bem com a vida e irradiando felicidade, deveria soar como uma contradição em termos. Sou levado a concordar com Drummond, que um dia comentou sobre essa profissão: "Das profissões que não rendem, sempre achei a de ascensorista uma das menos divertidas. Para nós, o elevador é a caixa onde nos metemos por alguns instantes, de passagem para algum lugar, sem qualquer sentimento que nos ligue a companheiros eventuais. Para o ascensorista, é a prisão a que está condenado durante a quarta parte do dia, ou durante a vida". "Condenada" ou vítima, porém, era tudo o que não parecia ser a minha ascensorista. A sua postura em nada se assemelhava ao tratamento mecânico que costumamos receber no cotidiano, normalmente um "bom dia" ou "boa tarde" impessoais e fora de sintonia com o restante da reação corporal de quem nos cumprimenta no ambiente de trabalho ou em outros locais públicos. Pura mise-en-scène em nome da política da boa vizinhança. A ascensorista saltitava de felicidade, como se estivesse a ponto de realizar um pas-de-deux, de plena alegria e júbilo. Seus olhos emitiam chispas, fazendo transbordar o que certamente lhe preenchia a alma. A minha reação de admiração não deve ter ultrapassado mais que vinte segundos, possivelmente o tempo suficiente de deslocamento entre o térreo e o segundo andar, mas foi o suficiente para gravar uma impressão indelével na minha memória. A reação de um ser aparentemente satisfeito com a sua cota diária de trabalho. De repente, eu contemplava a ascensorista num particular dia de êxtase: a noite anterior poderia ter sido excepcionalmente romântica, o capítulo da sua novela preferida a teria tocado de uma maneira especial, o filho que lhe mostrara um vitorioso boletim escolar, a notícia de um parente distante há muito desaparecido etc. Enfim, um instante de fugaz felicidade. Noutras duas visitas que fiz ao banco, contudo, pude ver a ascensorista em ação e comprovar que aquele era o seu estado de espírito habitual, enquanto enfrentava a tarefa pouco rentável de subir e descer num elevador. Depois daquele dia, inclui a ascensorista no meu rol de pessoas inesquecíveis, ela que não é nenhuma celebridade, uma notável ou uma vip da nossa sociedade. Ela que traz na pele e nos cabelos a herança de um Brasil cafuzo que teve de se resignar à vida na senzala, mas que pode oferecer um exemplo de simplicidade, cada vez mais raro na luta feroz do dia-a-dia. Nota do Editor: Paulo Lima é jornalista freelancer, colaborador do Observatório da Imprensa e editor do jornal eletrônico Balaio de Notícias.
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