Iniciei o dia como o mundo exterior. A imagem do espelho, ainda sonolenta, expressava sonhos e realidades. O olhar fixo perdia-se em mim, buscava algo que não conseguia traduzir na imagem refletida. Eu. O reflexo sorriu enigmático. Era alegria ou representação? Por instantes, permanecemos ali com o riso suspenso, eu e a imagem, até que ela ganhou vida própria. Seus traços foram distorcidos. Formas acentuadas assumiram as feições, os lábios eram sons, os olhos palavras... Os lábios eram a musicalidade de um poema cheio de metáforas, os olhos expunham a verdade das lendas familiares... Todo o rosto assumia a intenção a ser interpretada, decifrada e vivida. O riso perdeu-se no vazio refletido no espelho. Uma grande tristeza, destas ancestrais que vivem na continuidade, a limitação de ser e de estar ali refletida em formas atemporais. O duplo desnudou os segredos esquecidos num caleidoscópio de peles e intenções. Quando os olhos acostumaram-se à obscuridade das formas, o rosto iluminou-se como um retrato renascentista, guardava a forma arredondada dos anjos e os cabelos encaracolados, mas escondia a malícia de ser o centro do próprio mundo e conhecer o poder a ser exercido na religiosidade dos encontros. A face colorida era o jardim virginal das primaveras e o espelho resplandecia a luz dos dias claros. Descansei na imagem. Perdida nas tantas inquietações, encontrei abrigo no plácido sorriso. Não demorou até que perdesse a perspectiva. O retrato ficou em apenas um plano como uma pintura gótica. Sem expressão, eu havia tornado-me lembrança sem profundidade, um insight. O olhar mal-traçado dirigia-se ao céu como se pedisse auxílio num tempo perdido em trevas e cruzadas. Quantos caminhos deixei de percorrer com medo da escuridão? Quando ensaiei a oração esquecida, clamando por minha salvação, a imagem libertou-se e ganhou formas ousadas. Grossas pinceladas fugiram do espelho e criaram uma superfície cheia de vivências. Perfis enfileirados. Pluralidade. Fortes cores contrastavam com o vazio do espelho enegrecido. Um quadro surrealista. Não consegui encontrar-me na identidade dos esboços. Era tudo o que enclausurei e era ainda um vitral que modificava as cores e contornos dos sonhos que gestei. Era algo que libertei e fugiu como os medos, era algo que retive e pari como o amanhã. Fechei os olhos, as formas embaralharam-se em meu pensamento. Um sonho ou um despertar? Abri os olhos com hesitação e encontrei-me ali com o sorriso suspenso. Com o olhar fixo, desafiei os mundos tentando costurar as realidades. Sonhos. Acordada, conjuguei a percepção dos retratos multifacetados que deixamos de colorir no cotidiano.
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