Duas crônicas zoológicas
Lamento da tartaruga morta
Segundo a Reuters, nossa venerável Addwaitya, que em bengali significa a primeira e única, partiu, em 23 de março último, para o céu das tartarugas-gigantes terrestres, depois da bagatela de um quarto de milênio entre nós, só na campana. Com toda a certeza, não leva boas notícias. Afinal, viveu mais do que o bastante para testemunhar o que o bicho-homem veio fazendo contra a saúde do planeta, e mesmo o que cansou de fazer e ainda faz com suas irmãs, parentes e contraparentes por esse mundo afora. Originária do atol de Aldabra, no oceano Índico, morou cento e vinte anos como bicho de estimação do general britânico Robert Clive e seus descendentes e os cento e trinta restantes no zôo de Kolkata (Calcutá), paparicada por gerações de funcionários e visitantes. Andava meio jururu nos últimos dias, pois soubera de um movimento entre as autoridades de sua cidade para conceder-lhe o título de a tartaruga mais velha do mundo, com direito a divulgação warholiana em toda a mídia planetária. Hipócritas, disse a si mesma, em quelonês antigo, cabeça encolhida, pálpebras caídas. Se conseguirem mesmo um lugar para mim no Guinness, aposto que vão comemorar a vitória com uma sopa de tartarugas novas. Em tempo: segundo os zoólogos do lugar, pesava cento e vinte quilos e morreu de falência do fígado. Myal, o gato participante
Quando meu irmão anunciou lá em casa que o nome do seu gato era Myal - naturalmente todos entenderam Miau -, começamos a pôr em dúvida a criatividade que lhe reconhecíamos até então. Eu, por exemplo, já estava disposto a dar uma alcunha ao simpático felino - Redundante -, mas sabia que não ia pegar. E explico: eram os primeiros tempos do Partido dos Trabalhadores, e estávamos empenhados na criação de um núcleo petista em Marechal Hermes. Aldo era o nosso grande líder, centralista-democrático como poucos, e não podia ver com bons olhos a idéia de abrigar em seu círculo de estudos este anarquista mitigado que só pensava em tarefas imediatas, com ou sem eufemismo. (Quando eu já tinha tomado umas e outras, sem.) Nessas circunstâncias, dar um apelido a Myal, que participava dos nossos encontros enrodilhando-se numa ponta da mesa, ao lado do homem, seria um crime de lesa-nomenklatura, inapelavelmente passível de expurgo. Não tínhamos nenhuma Sibéria no velho bairro, mas não me livraria de um tremendo gelo por parte dos outros. Como se vê, nosso pavor em questionar o líder já começava pelo gato. De fato, quando meu irmão dizia: "Questão de ordem, Myal!" durante uma reunião, todos sorríamos da ululante obviedade do vocativo, mas sorríamos na mococa, cautelosos, que ninguém era bobo. Um belo dia, caíram todas as fichas. Um dos nossos, creio que o professor Fernando, ao relacionar numa folha de papel os quadros que comporiam uma comissão de desagravo ao padre comunista de nossa paróquia, incluiu de sacanagem Myal, naturalmente grafando-o tal como o entendíamos, Miau. Aldo teve um acesso de fúria leninista. Pegou da esferográfica, riscou febrilmente o nome empastelado do bichano e corrigiu. E, com superioridade joyciana, deu uma boa gargalhada e comentou: "Myal, meus companheiros, Myal... com ípsilon e ele no fim." Segundo ele, era a "justaposição das duas primeiras letras tanto de Myrthes, sua mulher nessa época, quanto de Aldo, façam-me o favor". Que gato mais romântico!, pensei comigo, cheio de maldade. Na mesma hora propus uma moção de desconfiança contra o meu irmão, alegando sentimentalismo burguês.
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