Na sua "Arte da Política - a história que vivi", uma espécie de autobiografia de pedestal, Fernando Henrique Cardoso, um dos fundadores da "Diálogo Interamericano" (versão americana do Foro de São Paulo, financiada pelas fundações Ford e Rockfeller, que tem por objetivo destruir o Estado-nação e ajudar a erguer um governo mundial), reverbera as excelências das novas "sociedades em rede", uma vertente irrecorrível do mundo globalizado, cujas principais características são as de criar, inapelavelmente, "novas formas de sociabilidade que saltam as muralhas dos territórios nacionais e as barreiras de lealdades dos grupos de interação primária, nas quais as relações se dão face a face, como a família, os grupos de trabalho ou os partidos e igrejas". O ex-presidente, sempre pressuroso, faz a exegese da obra de um sociólogo espanhol, Manuel Castells, particularmente de "A Sociedade em Rede" (Paz e Terra, 1999), em que o "iluminado" cientista social ibérico tece considerações sobre a formação de uma "sociedade civil planetária", de fato, uma nova cruzada para "os que desejam refazer a sociedade civil global e local e as formas de controle público". FHC, vendendo espumas flutuantes, acredita que falar em cultura cívica ou Estado-nação é coisa superada, visto que "nos dias de hoje a dinâmica da vida política é conferida (não exclusivamente) por movimentos sociais, ONGs e por movimentos de opinião aparentemente sem base institucional maior". E, afinal, entregando a rapadura, via Alan Touraine (francês típico e utópico), procura avalizar que só "das energias geradas pelos ambientalistas, feministas e outros do gênero chegaremos ao caminho de Damasco". No seu trololó de sociólogo visionário, FHC termina por concluir, voltando a Castells, que, no histórico, "a luta por um novo Estado", a partir da conjunção de "identidades de resistência", tem "algo a ver com uma releitura do Gramsci de Cartas do cárcere", sem dúvida, uma "espécie de renascimento da idéia da hegemonia, não mais baseada no partido-Príncipe, mas na mobilização difusa e participativa, mais espontânea e, portanto, menos previsível dos que acreditam num mundo melhor". Em resumo: o mundo globalizado, para FHC e congêneres, não seria mais o palco limitado dos Estados nacionais, a se debater em antigos conceitos de autonomia ou independência, mas uma pletora de ONGs socializantes, a receber os eflúvios providenciais da desmoralizada ONU, a mãe permissiva do venturoso "devenir". Instituições que deram fundamento à democracia, tais como sindicatos, partidos, parlamentos, a ideologia liberal, igrejas etc., não passariam hoje de frágeis "colunas de alumínio" (no dizer de Fourier, o fanático idealizador das novas "ordens societárias"), todas ultrapassadas pela chama redentora das ONGs. Num texto de 1985, preparado para um seminário latino-americano promovido pela FAO (siglas de Food and Agriculture Organization, órgão da ONU para combater a fome, mas omisso diante do genocídio de Ruanda, com a morte coletiva de meio milhão de famintos), um dos principais arautos desse estranho animal da agitação planetária deixa claro que as organizações não-governamentais pertencem a um universo difuso e de largo espectro na manipulação de verbas bilionárias ("sem fins lucrativos"). O panfleto, procurando defini-las, informa que as ONGs "(entidades totalizantes das "sociedades em rede"), em resumo, "mobilizam a dedicação voluntária, mas não são igrejas. Mexem muito com política, mas não são partidárias e, via de regra, querem-se distantes do Estado. Promovem o "desenvolvimento" mas não se especializam em "produtividade". Fazem pesquisas, mas não são acadêmicas. Não é fácil classificá-las. É compreensível, portanto, que sejam alvo de suspeitas, quando não mesmo de perseguições". O texto, definidor e classificatório, mas muito elucidativo, esclarece que as ONGs se multiplicaram e se tornaram atraentes no Brasil a partir dos anos 70, "justamente por que se apresentavam como uma alternativa às práticas institucionais características das universidades, igrejas e partidos de esquerda - e como uma alternativa profissional". A massa recrutada para a formação desse novo exército imperialista, de "dupla militância", viria exclusivamente das igrejas, das universidades e dos partidos de esquerda, "com a absorção de pessoas cujas lealdades fundamentais pertenciam a organizações clandestinas". No parecer do publicista, as ONGs "são ilhas que se querem anunciadoras de um mundo melhor", espaço onde "a utopia é trabalhada profissionalmente". De fato, sua meta redentora é: "Bloquear o fascínio pelo que vem de cima, e identificar-se com o que vem de baixo". A partir dai, desse iniludível fosso para a promoção da luta de classes, abre-se um vastíssimo campo de atuação, que deve voltar-se para o proselitismo esquerdizante entre menores, mulheres, índios, negros, camponeses, drogados, homossexuais, prostitutas operários, associações de moradores e centenas de outros "setores" a serem ambiguamente trabalhados. O que o texto não revela é que as ONGs no Brasil (hoje, em torno de 280 mil instituições, manobrado mais US$ 30 bilhões) vieram a se tornar, salvo exceções, no mais devastador instrumento da gigolotagem estatizante, sugadoras insaciáveis dos recursos públicos e um braço poderoso da trampa global, pois que também são nutridas, fortemente, no plano externo, por governos, empresas e a banca internacional, todos articulados para a derrocada do Estado-nação. As triangulações fraudulentas das ONGs do Garotinho e de Marta Suplicy, ambos socialistas, e a ação diluente da WWF, diretamente ligada ao establishment britânico, são a indisfarçável evidência de como se encadeiam os integrantes da nova "sociedade em rede". Voltaremos ao assunto. Nota do Editor: Ipojuca Pontes é cineasta, jornalista, escritor e ex-Secretário Nacional da Cultura.
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