16 microcrônicas colecionadas no frio do inverno paranaense
CHOCOLATE Durante a infância fui movido pelo desejo. Na adolescência fui carregado pela dúvida. Nesta interminável maturidade a esperança é o tema em debate. Na velhice quero simplesmente me entupir de chocolate. VESTIBULAR Não está certo esse negócio de reservar as vagas do céu aos viciados em reza, se tantas boas ações são obra de pessoas que não pisam nos templos. A falta de vagas no céu mostrou-se um problema grave desde o início dos tempos. O critério de avaliação dos candidatos é assunto controverso, muitas vezes sangrento, e precisa ser urgentemente revisto. Sugiro vestibular com questões de múltipla escolha, incluindo prova de matemática e redação. CRIAÇÃO O frio na espinha do momento de criação... um vento que atravessa os olhos, perfura o crânio um corisco invisível, e à beira do cálice de mil sabores... tantos aqui se viram aniquilados, por falta de inspiração. AMOR Não há vida na ausência do amor. Em vez de versos, mexericos. Ruídos no espaço das canções. Trabalho no lugar das descobertas. Cansaço sem a recompensa dos beijos, insônia sem abraços, comida sem sabor. Não se perca num mundo sem amor. Não espere que chegue, crie-o à sua imagem e semelhança. A ESSÊNCIA Erguer edifícios, abrir ruas... não sabemos fazer algo mais original? E esses modelos nos out-doors, cada um com um bico mais bicudo que o outro, para mostrar que estamos vivendo uma época de sofisticadas representações. Nada fazemos para levantar das cinzas a fênix, o fato já quase esquecido de que fomos simples e humanos. (Se as aparências não enganassem, correriam o risco de se tornarem a essência!). PERCEPÇÃO Eu era um desses seres que sangram, e esse fluido nem sempre vertia doce. Era eu quem rodava no infinito, pensando-me um animal sagrado, desses que matam no sábado e já se põem a chorar no domingo. Querendo livrar-me dessa sina assombrosa, planejei viajar para o nada, para o sempre, para o todo absoluto, onde em vácuo existisse como forma cristalina de uma percepção. DESIGN Ao criar o Homem, Deus utilizou o estilo clássico para desenhar os espadachins, com um pincel modernista pintou as cortesãs, esculpiu com cortes cubistas o rosto dos generais e deu um toque impressionista à compleição dos menestréis. Com art nouveau definiu os escafandristas e com a espátula barroca marcou a classe dos advogados. Com um lápis pós-moderno riscou a mancha indefinível de sua própria face. AH! CADÊMICO Você pode citar as fontes, mostrar o canudo, diagramar o texto, fazer as notas de rodapé, pintar a máscara, rodar a baiana, seguir na crista da onda e ser chamado de “eclético”. Mas no fundo, bem no fundo do seu coração selvagem, você sabe que foi domado. INVERNO Melancólicas tardes de inverno, paisagens desfolhadas em cinzas e marrons, horas em que reluto em saber quem sou, até quando estou, e para que estou. Um brilho fosco no vão da janela do ônibus, entra meus olhos a iluminar o que sou, este pedaço de imagem indeterminada, solta no espaço feito um selo soprado pelos ventos de uma nova constelação. COMPOSIÇÃO Todo criador está sempre elaborando sua obra obra-prima. Ainda quando transita no centro da metrópole, falando e vivendo banalidades, ruge em seu peito a orquestra filarmônica dos astros, reverberam histriônicos saxofone e violoncelo, palpitam entusiasmadas guitarras e oboés, compondo, compondo sempre... que seja um verso, um único verso equivale a uma vida. O AMOR O amor não cresce numa sala asséptica, revestida de azulejos e plástico. Nasce em meio às ervas daninhas, cresce empurrando para os lados, subindo além das outras vontades, destacando-se como um daqueles botões compridos e vermelhos na tramada floresta do pântano. BURGUEOIS A burguesia foi criada para que a humanidade deixasse de sentir calafrios. Foi nesse período que cessou o fluxo evolutivo. São os calafrios que movem as peças que movem a humanidade. A BELEZA A beleza é o alimento diário do amor. Sem a beleza, o amor é como a planta esquecida no vaso sem água, que logo se desidrata e fenece. O amor se estende como uma árvore de cipós em busca de um belo gesto, um olhar bonito, uma palavra doce e colorida, um jeito novo de tirar as calças... DECLARAÇÃO Declaro-me isento dos conceitos, dos bordões, das sacadas e dos patrões. Declaro-me isento dos truques lógicos que se prestam à dissimulação. Declaro-me isento de verrugas e varicela, bem como da solidão que mata os poetas e do prestígio que intoxica as estrelas. Declaro-me atemporal, impróprio e inadequado para cingir esses novos modelos de elegância junto ao todo que se desagrega. ARTICULAÇÕES Todas as palavras são definições, símbolos definitivos, pedras duras que se articulam pelas arestas formando frases, correntes, colares que enfeitam as formas, mas pouco dizem ao coração. EPITÁFIOS Quando a estrela mais bela e brilhante descer sobre nossa casa, e ainda estivermos regando a grama e os girassóis, poderemos abrir as palmas, espalhar os lírios, entoar o hino dos homens que não têm nação, não têm partidos, nem terão epitáfios... mas que passam os melhores dias de sol sob as sombras escrevendo sobre o paraíso.
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