No interior da Bahia da minha infância, não havia água encanada nas casas e os homens construíam cacimbas ou cisternas, como se conhecia mais comumente. Cavavam-se buracos de quinze, vinte metros, não sei ao certo, até encontrar água potável. Estava lá o fundo do poço. Depois, colocavam-se umas espécies de "anéis" de concreto que se chamavam manilhas. Vez em quando, morria um peão soterrado nessa empreitada um tanto arriscada e executada quase sempre em condições precárias de trabalho. Nunca trabalhei na construção de cacimba alguma. Isso era, e ainda é, certamente, trabalho reservado aos mais pobres, aos chamados "peões". Eu era da turma da Casa Grande. Para minha fortuna, decerto. Portanto, nunca conheci de fato o fundo do poço. Mas sei que ele é um local lúgubre, com ar rarefeito, onde a luz quase não chega. Sei também que, ao se chegar lá, já não há mais o que cavar, só resta subir. O Brasil já chegou ao fundo do poço. E isso não se deve ao governo Lula, obviamente, mas, ao contrário, registre-se, temos ainda nesse governo uma oportunidade de ouro de começarmos, de uma vez por todas, a escalada em direção à luz. De começarmos a longa escalada para sairmos do fundo do poço em que nos encontramos. É isso. Que fique claro. Não dá mais para ficar dourando a pílula. Já chegamos ao fundo do poço. Não podemos mais afundar. É o momento de nos unirmos, independente de ideologias e colorações partidárias. É hora de deixar de lado as intrigas políticas, o denuncismo vazio e oportunista, a "polititica", o "blá-blá-blá" e o "diz-que-diz". É hora de aproveitar o empuxo e escalar as paredes do poço; hora de arregaçar as mangas; hora de levantar a cabeça e buscar ares menos viciados. Chega de vaidade, de narcisismo, de bovarismo. Nós somos o que somos e não exatamente o que desejamos ou idealizamos. Não dá para viver no eterno faz-de-conta de que vivemos numa democracia, de que construímos uma nação, de que a justiça e as oportunidades são para todos. Não dá mais para cada um viver encerrado no seu mundinho, na linha do "se eu estou bem, então tudo bem". E, para os que têm vergonha de olhar-se no espelho e ver o duro reflexo da realidade, que fique claro, de uma vez por todas, somos um dos países mais injustos e desiguais do mundo. O IDH é vexatório. O salário mínimo é uma indignidade. A saúde é mais do que precária. Boa parte da população alimenta-se de lixo. O nível de escolarização é baixíssimo. A educação no país é uma "prioridade", para sempre adiada, enquanto vamos agigantando a legião de analfabetos, semi-analfabetos e analfabetos funcionais. Enquanto a progressão continuada, ou seria mais honesto dizer "regressão continuada"?, (de)forma jovens incapazes de ler e entender um texto, por mais simples que este seja. Uma educação que deforma a nossa juventude formando não-cidadãos, indivíduos apáticos que não têm a mínima noção do seu lugar no mundo e na sociedade. Não. Não dá para fazer de conta que está tudo bem. E fazer uma crônica engraçadinha, ou tão-somente prenhe em recursos literários/estilísticos ou até mesmo "pra cima" e assim, quem sabe, tornar o seu dia (e também o meu, claro) mais alegre, ou, pelo menos, menos triste. Não dá. "Everythings ok, everythings all right"? Nada está bem. Nada está OK. Os trens superlotados, vindos dos subúrbios mais distantes, todos os dias continuam a nos dizer em seu som metálico, estridente, constrangedor: "Tem gente com fome/dá de comer". Seria prudente, portanto, que passássemos a nos preocupar, pelo menos um pouco, um pouquinho só, em mudar essa realidade iníqua que nos cerca (pois absurdamente cruel e injusta), distribuir um pouco essa renda tão concentrada e deixar um pouco de lado o nosso próprio umbigo. Senão, mais cedo ou mais tarde, a fatura nos será cobrada. E aí, meu caro, pouco vai importar você afirmar peremptoriamente que não tem nada a ver com isso, que não tem culpa alguma nessa história toda. Portanto, essa história de pregar voto nulo nessas eleições ou de gritar "Fora com a Política e com todos os políticos", essa história de negar a Política (com "Pê" maiúsculo) como instrumento de mudanças da sociedade é coisa de gente que não tem a mínima noção das coisas. Ou desabafo de momento dos velhos cultores do próprio umbigo. Não podemos perder o trem da história que ainda nos grita insistentemente: "Tem gente com fome. Dá de comer". Tem gente com fome. Dá de comer.
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