Ainda ouço bem-te-vis no Jardim Carioca. Não são muitos. Se bobear, dois, talvez um casal. Um casal de pitanguás, ou pitauás, diriam os índios temiminós, primeiros habitantes da ilha de Paranapuã, hoje Ilha do Governador. Há quase meio século, em sua crônica "História de bem-te-vi", Cecília Meireles julgou que estivessem para acabar, afugentados pelos arranha-céus que tomavam conta dos bairros cariocas, derrubando árvores e arrasando áreas verdes. Não acabaram, mas é fato que em nossa cidade já não existem em grande número e, com toda a certeza, não pegam mais ninguém com a boca na botija, nem mesmo o português da velha piada, com todo o respeito. Aqui onde moro, por exemplo, à beira da Estrada do Galeão, sofrem a desleal concorrência do frenético movimento de veículos que, já às seis da manhã, estão infernizando o mundo. Mas por que estou preocupado com a provável extinção dos bem-te-vis? Não estou preocupado. Quer dizer, não estou especialmente preocupado com isso. Até que o último bem-te-vi, assim espero, apague todas as luzes do seu observatório panóptico, já estarei de mufla queimada e bem menos egoísta debaixo da terra. Na verdade, escrevo sobre bem-te-vis, porque hoje bem cedo um deles pousou no peitoril de minha janela, olhando com intensa curiosidade a desarrumação de tudo no quarto. "Então é verdade", disse o passarinho, cabisbaixo. "Está mesmo de partida." "Como soube?", perguntei, fingindo acatar com naturalidade o fato de ele falar como toda a gente. "Por aí", respondeu. "Foi o assunto do dia no Princesinha da Ilha. É uma tristeza. Você pelo menos prestava atenção ao nosso canto. Não dá para reconsiderar?" "Não é caso de reconsideração. Quebrei, bem-te-vi. Aluguel, condomínio, cheque especial, empréstimos vencidos... O trabalho que entra não está dando para cobrir tudo isso. Tenho de sair daqui." "E a Betinha?" "Porra, bem-te-vi... Vê tanta coisa, e ainda não viu que estamos separados há mais de cinco anos? Betinha vai para o colo da mãe, aqui mesmo no 201; e eu também, em Marechal Hermes." "Quem tem mãe não tem medo", sentenciou a curiosa ave. "Tudo bem, se é para dar um jeito nas finanças, estou feliz por você. Além disso, lá em Marechal tem muito mais bem-te-vis do que no Jardim Carioca. Claro, tem mais árvores, menos barulho de carros..." Enquanto o meu espantoso Pitangus sulphuratus falava, lembrei-me de uma coisa. "Mas, bem-te-vi, fiquei treze anos neste apartamento, e só agora você me aparece com esse interesse todo em minha partida?" "Aparecer... Do jeito que você fuma, meu?", replicou ele. "Eu e a siririca (a patroa dele, esclareceu) adoramos aquela gravura de Van Gogh que a Betinha pendurou na parede do escritório, gostamos de ouvir você cantando, vamos à loucura com os seus cedês de música clássica, sobretudo o esfuziante Rossini, mas a fumaça do cigarro nos afugenta na mesma hora. Pára com essa merda, cara." "Bem", respondi, meio envergonhado, "depois de 31 de maio não haverá mais fumaça." Não era o que queria ouvir. Uma ou outra lágrima rolou dos seus olhinhos. Notei então que ele tinha as sobrancelhas brancas e o ar venerável dos mestres bem-te-vis. Deu uma cagada no peitoril da janela, que era a sua maneira de desejar-me boa sorte, e partiu.
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