O homem tem um relampejar de idéia. Coisa meio desatinada que passou pela cabeça dele. Será? Pode ser. Percorre a rua a divagar consigo mesmo se deve dar crédito àquela ideiazinha meio serelepe que passa a brincar na sua cabeça. Mede-a de cima abaixo. Pesa-a. A coitadinha já começa a fazer cara de choro ao ser assim tão especulada. Resolve escrevê-la em papel. Primeiro rascunho. Depois, dá-lhe mais uma rabiscada. Tira daqui, bota dali. Deixa o papel num canto. Quando volta a olhar para ela já lhe parece meio sem graça. Enjoou. A pobre é guardada entre fotografias e cartas de amores já extintos. Os quatro ventos sopram-lhe uma melodia doce. Cantarola-a de fininho. Vira um assobio. Ela fica tocando em sua cabeça. Resolve transformá-la em cifras. Rabisca-a em um guardanapo de papel. Pensa em contemplá-la com uma letra, um poema. Matuta. Ajeita umas rimas. Cantarola no banheiro, no caminho do trabalho, enrubesce quando alguém o ouve. Desencanta-se com a música. Ficou meio tola. Seus olhos contemplam a imagem de um belo entardecer. O céu parece mandar-lhe uma deliciosa mensagem com sua abundância de laranjas e amarelos. Aquela visão inunda seus olhos. Passa a reproduzi-la com tintas e pincéis. Olha para o resultado. Não tem o mesmo gosto de quando experimentou o entardecer verdadeiro. Enrola a tela. Guarda-a no quartinho de bugigangas. O homem quer ser artista. Quer porque quer. Começou a fazer aulas. Quer aprender a escrever, pintar, cantar. Tranca-se em seu ateliê. Tenta encontrar algum motivo. Clama, chora, esperneia. Mas as musas não aparecem. A noite, em sonho, cruza com um anjo e resolve perguntar do paradeiro de Calíope e suas irmãs. É atingido em cheio por uma bofetada: “Maldito! Elas cansaram de visitá-lo e você não lhes deu crédito. Mandaram-lhe uma vasta prole. Não sabe que seus filhos não são seus? Sua função é fazê-los vir ao mundo, revelarem-se. Não se prende um filho em uma prisão para que morra à míngua. Recebeu muitas idéias, mas não as deu à luz. Encalacrou-as todas no frio calabouço da sua mente, em suas muitas gavetas, em seus quartos de despejo. Um grande arquivo é o que é. Está cheio, não pode receber mais nada.” O anjo percorre a casa toda. Revira gavetas, armários, pastas. Recolhe o material acumulado. Retira a poeira e as teias de aranha. Lustra, embrulha com fitas de seda. As idéias ficam parecendo novas. Ao alvorecer as deixa num cesto nas portas das casas. Soa as campanas e sai sacudindo as asas.
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