Recolham as armas, suspendam a luta; é tempo de luto. É tempo de chorar os nossos mortos. De sepultar os insepultos. É tempo de lágrimas, de prantear os nossos entes queridos, de beijá-los, de abraçá-los, de acariciá-los, de pentear-lhes os cabelos, de dizer-lhes o que precisava ser dito e que não foi. Falar-lhes sobre o nosso amor. Ainda que não possa ser mais ouvido. É tempo de calar, de recolher, de se juntar aos mais próximos para comungar a mesma dor. Casa com a porta semi-aberta. É tempo de outras balas, que não as de amargor, pólvora, aço, ódio, revanche e medo; balas inúteis. É tempo de balas doces, rosas, azuis, vermelhas, laranjas, multicoloridas, de leite, de caramelo. Basta das que amargam, ferem e matam. É tempo de tentar algo doce. Não oferecer à morte ainda mais morte. Para a morte é preciso vida. É preciso comunhão, apoio, é preciso lenço. É tempo de banhar os nossos mortos, de perfumar os nossos mortos, de maquiar os nossos mortos, de paramentar os nossos mortos porta para dentro. A dor, só quem sente sabe a sua dor. É tempo de contabilizar perdas, de fazer as contas do que segue, de que modo segue, reencontrar, recriar motivos. É preciso cuidar dos nossos mortos. Fechar-lhes as pálpebras, arrumar-lhes o colarinho, dobrar-lhes os braços sobre o peito. Cobri-los. Engraxar-lhes os sapatos. A morte exige dignidade. É tempo de carpideiras, de poetas soturnos, de muito pranto e muito réquiem para os nossos mortos. Mas não nos culpemos, já há bastante culpa, para duas eternidades. Somos culpados demais por tudo. Sempre faltou, sempre foi pouco, sempre insuficiente. E mágoas antigas impediram palavras de afeto sentido. É preciso o perdão, para que na morte nasça uma outra humanidade, um outro sentimento, batismo em novas águas. É tempo de encontro no desencontro. É tempo de solidariedade na solidão. De braço amigo sobre o ombro. Não nos matemos mais, um dia chegará a sua, minha vez, mas não já. O tempo cuidará de tudo, de todos, diligentemente. É tempo de certezas inelutáveis. É tempo de espanto. E é tempo também de resignação e de superação. Segura firme a alça do caixão. A morte pesa. Carregar nossos mortos até a sepultura, até a despedida. Nossos mortos caminham por nós. Não, não, não! Não, não é tempo de luta. Não se paga a morte com outra morte, não se apaga a morte com outra morte. 1 morte a 1? Não há empate, só há derrota. A morte é projeto mesquinho, menor. Vida: compromisso coletivo. Recolham as armas! Recolham as armas! É tempo de círios, de pêsames, de condolências, de coroas de flores, de roupas lutuosas, de silêncio solene. É tempo de desespero sereno. Dar as mãos aos nossos mortos até o último instante, como a uma criança que teme o escuro, na hora de dormir. Sentar-se ao seu lado na cama, afagar-lhe o rosto e aguardá-la dormir, o sono bom. À boca do sono, como à boca do túmulo, pedir a Deus que não a leve para tão longe. É preciso funeral para os mortos. É preciso consolo para os vivos, os viúvos, os filhos, os netos. Basta de ódio; a morte por si já revolta demais. É preciso crer numa justiça improvável, numa temerária justiça dos vivos, na justiça de Deus ou supradivina. É preciso crer naquilo em que não se crê. Amparemo-nos. É tempo de terra, de silêncio de solo. Não germinará hoje, não germinará amanhã, nem na semana que vem, nem na outra semana. Se chover mês que vem quem sabe? Daqui a oito é o sétimo dia. É tempo de luto. Nota do Editor: Guilherme Azevedo é jornalista e escritor, autor de "As Aventuras de Alencar Almeida" (Editora Casa Amarela).
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