13/09/2025  11h11
· Guia 2025     · O Guaruçá     · Cartões-postais     · Webmail     · Ubatuba            · · ·
O Guaruçá - Informação e Cultura
O GUARUÇÁ Índice d'O Guaruçá Colunistas SEÇÕES SERVIÇOS Biorritmo Busca n'O Guaruçá Expediente Home d'O Guaruçá
Acesso ao Sistema
Login
Senha

« Cadastro Gratuito »
SEÇÃO
Crônicas
31/05/2006 - 18h48
A bolha
Fernanda Vicentini
 

Espremeu com força o tubo de detergente na esponja. As poucas gotas não eram suficientes para tantos pratos. A gordura parecia inserida na fabricação daquela louça barata.

Colocou o braço dentro da pia, até quase a altura do cotovelo. Sentia nas mãos os restos dos alimentos que flutuavam na água. Engolia a ânsia com secura, como fazia tantas vezes todos os dias.

O avental que ela usava era manchado, roto, com os bordados se desmanchando. Ela mesma o tinha costurado tantas vezes, cada remendo com uma tristeza sem fim. Pensou no zelo que nunca teve com as coisas de casa, o cuidado que desperdiçou com aquela vida que não escolheu para si.

Ouvia da cozinha o som da televisão ligada. Estava no volume exato para abafar soluços de um choro caseiro. Lavava a panela do feijão com as lágrimas ácidas da existência cretina. Passou o braço no rosto para se enxugar. Engordurou parte da testa.

Deu pequenos passos para ver o que acontecia na sala. Ali, um marido jazia no sono do almoço farto, fugindo, quem sabe, da consciência da inutilidade. Era de esperar. Voltou à pia.

Apertou de novo o tubo de detergente na esponja. Dessa vez o produto não dava nem para desgrudar do frasco. Surpreendentemente, uma bolha de sabão se formou e nasceu do plástico.

Flutuou inocente por alguns instantes, mais leve que o ar. Passeou perto da janela da cozinha, dançou com pouca alegria e tão rápido se estourou. E a mulher, respirando pela boca, encheu-se de uma alegria nunca antes sentida.

Poderia tudo, naquele instante. Era tão bonita que exalava um cheiro de flor. Começou a se movimentar com graça entre a mesa e o fogão, dando passos de bailarina. Cantarolava uma composição desconhecida, a música que tocava dentro dela.

E foi perdendo peso e ficando cada vez mais distante do chão de linóleo. Quase encostava nos azulejos e com calma manobrava o corpo para não tocar em nenhuma superfície que pudesse acabar com o seu reinado.

Produzia um zunido baixo e agudo, que despertou o homem na sala. Ele veio devagar para descobrir a fonte daquele barulho de inseto, aquele som incógnito.

Quando entrou no cômodo viu a esposa suspensa no ar, de olhos fechados, tão imersa em si mesma. Silenciou constrangido por observar um momento tão íntimo. Ela era a própria bolha de sabão. Fascinava pela delicadeza e fragilidade.

Subitamente ela acordou e viu ali, boquiaberto, o esposo. Antes de imprimir qualquer reação, estalou os olhos e prendeu a respiração.

Estourou-se ali, naquele domingo, com a cozinha por arrumar.


Nota do Editor: Fernanda Vicentini é jornalista.

PUBLICIDADE
ÚLTIMAS PUBLICAÇÕES SOBRE "CRÔNICAS"Índice das publicações sobre "CRÔNICAS"
31/12/2022 - 07h23 Enfim, `Arteado´!
30/12/2022 - 05h37 É pracabá
29/12/2022 - 06h33 Onde nascem os meus monstros
28/12/2022 - 06h39 Um Natal adulto
27/12/2022 - 07h36 Holy Night
26/12/2022 - 07h44 A vitória da Argentina
· FALE CONOSCO · ANUNCIE AQUI · TERMOS DE USO ·
Copyright © 1998-2025, UbaWeb. Direitos Reservados.