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Vocês vão pensar que é uma heresia, mas vou dizer que essa matança em São Paulo não é nada surpreendente, nem condenável do ponto de vista sociológico. Na década de 1980, Fritjof Capra já dizia que os administradores de cidades como Nova York estavam completamente convencidos de que não havia mais como exercer o controle sobre megalópoles daquele porte (parece que lá o prefeito resolveu parte do problema; ninguém fala que o policiamento ostensivo pós-11 de Setembro desanimou os criminosos). São Paulo é um campo de guerra há muito tempo, e não adianta eleger mocinhos e bandidos, pelo simples fato de que isso não resolve o problema. O que resolve problema é conversa sincera e honesta, mas isso foi escondido no horizonte distante. Vou repetir um exemplo que dei, alguns meses atrás: em 1906 Curitiba tinha aproximadamente 50 mil habitantes. Um século depois, são mais de dois milhões - um crescimento de 4.000% num século. Algo parecido ocorre nos corpos em fase de degeneração: o câncer. E todos sabem que passar pomada nesse tipo de ferida não resolve. Por que temos de ouvir os governos dizer que vão passar pomada em São Paulo? O noticiário conta que os próprios policiais paulistanos estão invadindo construções da CEF, por falta de moradia decente. O que fazemos com isso? Devemos ficar histéricos? O discurso do Lula é mais sensato: o massacre é conseqüência de anos de educação pifada. Com a timidez desse seu discurso, companheiro, você pode ter toda a razão do mundo, mas é como se dissesse: "esquecemos de usar o filtro solar e deu nisso". E Agora, Companheiro? Devemos seqüestrar novamente o embaixador americano, enquanto o Brasil vence mais uma Copa do Mundo? Estou sem palavras, como milhões de meus concidadãos. Antes que saiamos todos correndo saltar pela janela, ofereço um texto de pescaria aos meus leitores sedentos de harmonia e solidariedade. Com tampa ou sem tampa? Giovanni Pontarolo, filho do tio Antonio Tranqüilo e da Claraídes, foi pescar com três companheiros. Matias e Romildo (Roma) tinham aproximadamente a mesma idade de Giovanni, algo em torno de trinta e quatro anos, enquanto Jurandir já passava dos quarenta e cinco. Os quatro na canoa, o sol da tarde foi esquentando cada vez mais, e a lua crescente não estava ajudando em nada. Os peixes não queriam beliscar, exceto um ou outro lambari, que vinha beijar a isca do Jurandir. Era o único que se contentava com as miudezas do rio. Os outros queriam os peixes graúdos, que por sua vez aguardavam a virada da lua para se manifestar. A frustração crescia conforme descia o sol, e o clima começou a azedar em cima do bote. As tradicionais gentilezas trocadas entre companheiros estavam se transformando em indiferença, depois resmungos e alguns ensaios de xingamentos. Sempre que um solicitava um favor ao colega do lado, ouvia uma reclamação. - Matias, me alcance a minhoca. - Tá longe né? Não dá pra dar uma esticadinha no braço? - Giovanni, me veja uma cerveja. - Por que não pega sozinho? - Ih, Roma, minha linha pegou aí na tua. Desenrosque, faz favor. - Desenrosque você. - Jurandir, me alcance uma laranja. Jurandir, que continuava enchendo o samburá com os lambaris cada vez mais numerosos e graúdos, abandonou o caniço, apanhou uma laranja do pacote, minuciosamente escolhida, a maior e mais alaranjada, passou na água, enxugou na camisa, arrancou a faca e passou a descascar a fruta, no silêncio absoluto que, de repente, tomou conta da embarcação. Todos os olhares estavam concentrados nas mãos eficientes de Jurandir, que fazia o contorno da laranja, extraindo a tira que se avolumava em seu colo, até deixar somente uma base minúscula no extremo do hemisfério inferior. Mostrou o produto final para o Giovanni, uma esfera completamente branca, e humilhou: - Com tampa ou sem tampa?
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