"Ah, miseráveis criaturas! Vocês pensam que são tão grandes! Vocês, que acham a humanidade tão pequena! Vocês, que querem reformar tudo! Por que não se reformam vocês mesmos? Esta tarefa seria suficiente!" (Frédéric Bastiat, em A Lei, referindo-se aos intelectuais socialistas) Há algum tempo venho escrevendo um ou outro artigo para este site, e agora, na certeza de que os leitores, sabendo de minha condição de juíza do trabalho, esperam uma manifestação minha, sinto-me no dever moral de fazê-lo (a despeito das recomendações que recebi de amigos para que não abordasse este tema, sob risco de colocar minha carreira ladeira abaixo). Sei que isso poderá até me render algumas represálias, inclusive de ordem profissional, mas não tenho medo delas. Teria medo, isso sim, de minha própria consciência, se me mantivesse neutra, calada, acovardada diante de fato tão grave. Ademais, aquele que se acovarda pela simples esperança de obter vantagens no futuro, sejam elas promoções, convocações ou meros tapinhas nas costas, sequer merece o respeito de seus pares ou da sociedade. E, no atual estado em que se encontra nossa cultura nacional, represálias já não são novidade alguma para aqueles que ousam desafiar o "politicamente correto". Assim, eu não seria a primeira e nem a última vítima dessa hipocrisia cultural. Eis-me, portanto, enfrentando, uma vez mais, minha associação nacional, a Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho).
Tomei conhecimento, por boletim que me foi enviado diretamente pela própria associação, da intenção de seu presidente, juiz José Nilton Pandelot, de obter uma audiência com o presidente venezuelano Hugo Chávez Frías, a fim de com ele debater "questões relativas à magistratura da Venezuela, ao associativismo e ao intercâmbio entre os juízes de ambos os países". Para isso, Pandelot visitou pessoalmente o embaixador venezuelano, Julio César Garcia Montoya, o qual elogiou a Anamatra, dizendo que ela é "uma entidade que está sempre na linha de frente da defesa dos direitos sociais e dos trabalhadores". Está tudo devidamente registrado e noticiado no site da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho. Depois de consultar alguns colegas, por telefone ou por e-mail, a fim de me inteirar das verdadeiras causas que levaram a Anamatra a pedir uma audiência com o populista Hugo Chávez, a explicação mais concreta que obtive é que a medida visava atender a uma solicitação dos próprios juízes venezuelanos, que, ou estariam impedidos de formar sua própria associação, ou queriam se inspirar no modelo anamatriano. Ora, francamente! Ninguém pode cair numa esparrela dessa! Se o associativismo de juízes é impedido naquele país, não há de ser um encontro entre seu chefe supremo e a Anamatra que irá resolver o problema, na medida em que a proibição, se houve, só pode ter partido do próprio governo. Ainda que se admita a hipótese de um "pedido de socorro" por parte dos juízes venezuelanos (o que nem mesmo é crível), a Anamatra não tem nada que se imiscuir nisso. E se a questão é um assessoramento para a formação de uma associação de juízes naquele país, caberia a esses próprios juízes venezuelanos, interessados em formar uma associação nos moldes da Anamatra, vir nos procurar. Mas, se num laivo de filantropia, às custas das contribuições mensais de cada um dos juízes do trabalho brasileiros, a Anamatra decidisse ir ao país vizinho atendendo a um "chamado" dos colegas hermanos, o correto seria buscar contato com os próprios juízes autores do pedido, e não com aquele que determina a proibição. Ou será que ela se acha tão importante assim, a ponto de influenciar a política de Chávez, ou mesmo a ponto de discutir com ele "questões relativas à magistratura da Venezuela"? Problemas dessa ordem, se existem, devem ser resolvidos internamente, lá pelos próprios venezuelanos, e não por um país distinto. Isso seria, no frigir dos ovos, ferir a soberania da Venezuela. E soberania, ao que se saiba, é algo que os juízes brasileiros têm o dever de respeitar. Ademais, não é admissível que, em pleno século XXI, uma categoria, seja ela qual for, não saiba como criar uma associação para a defesa dos seus direitos e prerrogativas e precise se "inspirar" em um modelo exterior. Também não se pode admitir a desculpa esfarrapada de que queremos um "intercâmbio entre os juízes de ambos os países", como afirmou Pandelot. Todos sabem que a Venezuela enfrenta seriíssimos problemas ligados à democracia e à liberdade, o que só é mantido e reforçado se e quando o Poder Judiciário também estiver nas mãos do governante. Que tipo de "intercâmbio", então, nos seria vantajoso? Lembremos, ainda, que a maioria do povo brasileiro não tem admiração alguma por Chávez - que só inspira medo e intranqüilidade no continente sul-americano -, o que faz com que as ligações entre a Anamatra e o presidente da Venezuela sejam vistas com maus olhos por nossa sociedade. Não sendo nada satisfatória a justificativa fornecida para a atitude de minha associação nacional, a questão se revela deveras preocupante. Uma associação de juízes não pode estar na linha de frente da defesa do que quer que seja, atividade essa típica de políticos ou de advogados. Seria o caos, por exemplo, se uma associação de juízes das Varas de Família saísse por aí defendendo as mulheres, ou os homens, ou mesmo se manifestando publicamente a favor ou contra o casamento. Quem iria confiar sua causa de divórcio, de guarda de filhos, de pensão alimentícia a juízes dessa estirpe? A Anamatra é uma organização que congrega e representa mais de 3 mil magistrados em todo o território nacional, e cujos posicionamentos somente deveriam ser exteriorizados mediante a prévia aprovação de toda a categoria em assembléia geral. Ou, no mínimo, mediante consulta, ainda que por e-mail ou por carta, a cada um de seus integrantes, associados ou não. Em assim não procedendo, estará ela agindo de forma arbitrária e até mesmo desonesta. O que os integrantes da diretoria da Anamatra (ou, pelo menos, seu presidente) parecem esquecer é que o seu pensamento não é, necessariamente, o pensamento de todos os juízes do trabalho do país. Assuntos de cunho ideológico, não importa de que matiz, não devem ser tratados a portas fechadas e, menos ainda, ensejar ações de vulto, como a visita a um chefe de Estado estrangeiro, para fins não muito claros, sem que haja o consentimento da maioria dos associados. Na verdade, na verdade, a Anamatra sequer deveria se envolver em questões ideológicas, tarefa essa que não se destina a juízes. E, menos ainda, em questões atinentes à política interna de um país estrangeiro. Mas a Anamatra, desprezando os mais comezinhos princípios democráticos - que estão sempre em sua prédica, mas jamais em sua prática -, decide, por reunião da diretoria ou por vontade de seu presidente, visitar o embaixador da Venezuela no Brasil e, ainda por cima, solicitar-lhe, em nome da categoria (!), uma audiência com o presidente daquele país. A atitude constitui desvio completo de finalidade, na medida em que juízes não fazem concurso público para agir como políticos, mas sim para, com total imparcialidade, aplicar a lei a cada caso concreto que lhes é submetido. O cidadão precisa ter certeza de que o juiz é não apenas aquela pessoa dotada de conhecimentos técnicos indispensáveis à sua atividade profissional, mas alguém que age com serenidade, com isenção e que, ao julgar o seu caso, não se deixará levar pelas paixões ou ideologias do momento. Não é isso, contudo, o que a sociedade brasileira, a partir do comportamento da Anamatra, poderá ver nos magistrados trabalhistas. Não bastasse a má fama que todos temos de estar sempre "protegendo" o empregado (quando, na verdade, a única proteção praticada pelos juízes sérios é aquela que vem do legislador, e não do seu próprio desejo de fazer "justiça social"), agora seremos obrigados a dar a mão à palmatória para admitir que, além de estarmos "sempre na linha de frente da defesa dos direitos sociais e dos trabalhadores", ainda buscamos o apoio de juízes alienígenas a fim de provar, a qualquer custo, que "um outro mundo é possível". Sem dúvida alguma a liberdade existe até para que alguns sejam marxistas, trotskistas, anarquistas, liberais ou o que mais quiserem. Mas isso não pode ir ao ponto de comprometer toda uma categoria de agentes públicos (o que é distinto de "agentes políticos"), como a magistratura trabalhista, fazendo com que a sociedade nos enxergue, a todos nós, como agentes chavistas. É preciso notar que não são dois ou três juízes, individualmente, que estão querendo uma audiência com Chávez, o que, por si só, já seria um absurdo. É a ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS MAGISTRADOS DA JUSTIÇA DO TRABALHO, o que é completamente diferente. Juízes têm o dever legal de se manterem neutros e imparciais. Mas o que se vê é a Anamatra tomar, aprioristicamente, o partido de todos os "trabalhadores" (e, agora, parece que não só dos trabalhadores brasileiros, mas também dos estrangeiros), sem que estes tenham sequer lhe pedido tal providência. A defesa desta ou daquela categoria cabe à associação que a representa, não a uma terceira. Na verdade, a Anamatra vem apresentando, já há algum tempo, um perfil nitidamente marxista, achando que pode "salvar a humanidade". Mas a humanidade já viu esse filme em outros tempos e em outros lugares, e o resultado foi sempre desastroso. Só espero que os verdadeiros juízes, aqueles que seguem à risca os preceitos éticos que devem conduzi-los em suas carreiras, não sejam contaminados por ideologias baratas tão em voga em nosso meio e, muito menos, que sejam atingidos pela má reputação que a sociedade certamente dará à maioria de nós pela irresponsabilidade com que age a Anamatra. Ainda bem que já me desfiliei da associação. Porque ela não representa, de forma alguma, os direitos de simples juíza (e não de política) que sou. Nota do Editor: Marli Nogueira é Juíza do Trabalho em Brasília.
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