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Crônicas
10/06/2006 - 14h07
Para dar fim ao Juízo Final
Anna Lee
 

Uma chuva fina caia insistentemente sobre Auschwitz. A trégua só veio quando o papa Bento 16 começou a rezar num antigo campo de concentração. O céu clareou e um arco-íris apareceu.

"Em um lugar como este, faltam palavras. No fim, pode haver apenas um silêncio no qual um coração clama por Deus. Por que, Deus, o senhor permaneceu em silêncio? Como pôde tolerar tudo isso? Onde estava Deus naqueles dias? Por que ficou ele em silêncio? Como pôde ele permitir esse massacre sem fim, esse triunfo do mal?", disse ele, evitando o idioma natal, o alemão.

Bento 16 visitou a Polônia por quatro dias, entre 25 e 28 de maio, seguindo o exemplo de seu antecessor, o polonês João Paulo 2º, que esteve em Auschwitz em 1979, em sua primeira viagem ao local como papa.

Bento 16 é alemão e, na juventude, ainda Joseph Ratzinger, foi forçado a se juntar aos hitleristas na 2ª Guerra Mundial. Como papa, tem demonstrado querer voltar aos princípios do cristianismo como os valores essenciais da Igreja moderna. Por isso mesmo, sua pergunta sobre onde estava Deus enquanto milhares de judeus eram assassinados nos campos de concentração causou surpresa. Alguns entenderam como imbecilidade. Outros, menos radicais, como um lapso, talvez, palavras mal colocadas, um fora.

Quanto a mim, foi uma experiência para dar fim ao Juízo Final.

Se Deus não estava em Auschwitz, uma das maiores barbáries da história da humanidade não estará em pauta no dia do Juízo Final. Os nazistas não serão punidos pelas atrocidades cometidas, nem os judeus serão recompensados pela provação que passaram. E isso me faz duvidar de que haverá um Juízo Final - uma intuição súbita provocada pelo papa Bento 16.
 
Os ateus dirão: "O Juízo Final é uma invenção dos que crêem na imortalidade da existência ou daqueles interessados em dominar os que acreditam ter dívidas com a divindade".

Pode ser.

Mas não há como negar que - mesmo que o Juízo Final seja pura invenção ou, como proponho aqui, seja dado um fim a ele - a condição humana nos sujeita sempre, independentemente de crenças ou não crenças, ao mundo da ação e da reação. Ou seja, se ajo de acordo com os dogmas, sou recompensado; se contrário às regras, sou punido. Relação essa que ultrapassa as instituições religiosas.

Vivemos num mundo paternal. Somos todos subjugados pela coerção do pai - representado na religião, no Estado ou na família - que determina as leis e julga os "filhos" de acordo com elas. Desfazer a imagem do pai e criar uma sociedade de fraternos é um ideal - aqui com toda a carga utópica que o termo possa carregar - que nem mesmo o comunismo pôde dar conta já que a condição de um Estado soberano se colocou como fundamental para a sustentação ideológica do regime.

Nietzsche destacou no livro Genealogia da Moral (e Deleuze sublinhou em "Para dar um fim ao juízo", de seu Crítica e Clínica) a condição do juízo: "a consciência de ter uma dívida para com a divindade, a aventura da dívida à medida que ela mesma se torna infinita, portanto impagável. O homem só apela para o juízo, só é julgável e só julga quando sua existência está submetida a uma dívida infinita: o infinito da dívida e a imortalidade da existência remetem um ao outro para constituir a doutrina do juízo".

Pensando com Nietzsche e Deleuze e alentada pela clamação de Bento 16, não posso evitar o sentimento de alívio imensurável que me invade.

A ausência do Deus em Auschwitz - juntada com o desmoronamento do comunismo, com as profundas mudanças ocorridas na estrutura familiar contemporânea e com o pai que conseguimos matar graças a Freud - quita a dívida até outro dia impagável que tínhamos com a divindade.
 
Por outro lado, é certo que, se o massacre promovido pelos nazistas não é uma questão de Juízo Final, outra pergunta se coloca: Por que os homens praticaram tal crueldade? E não posso deixar de me incluir entre esses homens, ainda que não tenha estado em Auschwitz - nem mesmo era nascida - e não tenha qualquer tendência anti-semita.

Agora, não se trata mais de ter uma dívida infinita, mas de assumir responsabilidades, sem que para isso seja necessário bater no peito e bradar: minha culpa, minha tão grande culpa. Neste nosso mundo globalizado, essa questão não é somente de um único povo, mas de todos. É algo que para ser digerido precisa muito mais de um céu claro e um arco-íris. Precisa de um sol potente a ponto de enxugar o chão de Auschwitz, enlameado pela chuva insistente de anos. Um sol que não pode esperar pelo Juízo Final que não virá.

A saber: enquanto Bento 16 visitava a Polônia, ocorreu um incidente em Varsóvia que levou a polícia a desconfiar de uma ação anti-semita. O rabino-chefe da Polônia, Michael Schudrich, foi atacado com um soco e spray de pimenta por um jovem que, segundo ele, gritou "a Polônia para os poloneses".


Nota do Editor: Anna Lee é jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte" / Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti / 2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem / Ed. Globo e Manchete.

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