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Crônicas
14/06/2006 - 07h27
A volta na quadra
Nei Duclós
 

Quarteirões em quadrados perfeitos, ruas e calçadas largas: a engenharia militar da República do Piratini engendrou a lógica na geografia urbana da minha cidade. Foi essa lógica que me salvou numa tarde sinistra, quando eu e meu irmão Luiz Carlos enfrentamos a fúria de um morador da nossa rua, aposentado compulsoriamente devido aos nervos, e que repousava em casa, saído de uma corporação das Forças Armadas, acredito que tenha sido a Marinha. Nós dois não devíamos ultrapassar os cinco anos de idade. Até hoje esse acontecimento mostra-se nítido em minha memória, já que foi minha primeira experiência com o horror.

Morávamos na esquina generosa de uma grande casa. Fomos até o meio da quadra para visitar dois moleques impossíveis, famosos por suas artimanhas e possuídos pelas mais loucas idéias predatórias. Talvez nossa visita tivesse sido incentivada por alguém que ficara encarregado de cuidar de nós (o que era sempre um transtorno) e estava com outros planos. Fomos sós até os garotos e lá ficamos a tarde toda. A ocupação não era bem uma brincadeira. Os anfitriões, tão minúsculos quanto nós, nos convenceram que as grandes pedras do quintal, as quais conseguíamos levantar só em duplas, deveriam ir direto para ao pátio do vizinho, o perturbado militar aposentado.

O muro que separava as casas era alto e exigia um esforço tremendo dos pirralhos, completamente motivados com aquilo que parecia uma travessura, mas que nos foi sugerido quase como uma obrigação. Do lado de lá, havia alarido de grande passarinhada, pois esse era o hobby do senhor imerso no seu recolhimento doentio, já que jamais ficava sossegado, estava sempre fazendo algo, vestindo calções com camiseta branca regata, dessas que se usam em quartéis.

Não éramos flor que se cheire. Não poderíamos recuar. Ficamos nessa faina por horas a fio. Quando já estava escurando (verbo que meu medo ágrafo inventou naquela época) ouvimos a voz da vítima, totalmente contrariado com nosso abnegado trabalho. O cara era forte e postou-se na calçada com um grande facão a tiracolo, ameaçando arrancar com sua espada de São Jorge nossos trêmulos passarinhos que guardávamos em calções precários. Ele falava à meia voz, para ouvirmos, e para que ninguém mais ouvisse, pois poderia chamar a atenção pela barbaridade que cometia logo contra nós, pirralhos absolutos, de cabelo raspado e olhar arregalado de um medo que jamais senti mais intenso.

Em meio ao susto e ao espanto, ficamos a confabular. Foi quando Luiz Carlos, futuro engenheiro e empresário precoce (organizava todas as quermesses inventadas para arranjarmos dinheiro) teve a mais brilhante das idéias: Vamos dar a volta na quadra!, disse ele, e isso me encheu de pavor. Dar a volta na quadra, coisa que nunca fizéramos antes, era a aventura mais louca que se poderia imaginar. Para mim, mas não para a lógica certeira do meu irmão, que baseava-se no princípio universal do quadrado. Ele sabia que se fôssemos em direção oposta à nossa casa, dobrando todas as esquinas, daríamos nela inapelavelmente. Para Luiz Carlos, isso era de uma transparência absoluta, tudo fazia sentido. Fugiríamos do algoz que obstava nosso passo em direção ao refúgio familiar, pois ele ficava exatamente no caminho, de plantão na calçada, andando de um lado para o outro, certo de que em algum momento (antes do pôr-do-sol!) teríamos de passar por ele.

Luiz Carlos preparou meu espírito, pois eu nunca acreditei em lógicas matemáticas nem em geometrias. Ele tinha tudo isso no DNA e na vocação e por isso tomou a dianteira. Segui meu irmão de língua de fora, segurando o choro, pois não poderia explodir antes que o plano desse certo. O algoz não foi atrás de nós e se foi, desistiu, pois, pirralhos inclementes, éramos azougues na corrida e chegamos fácil até o primeiro round, a mansão da Generina, milionária excêntrica e de mão fechada. A próxima esquina estava, para nosso tamanho de pulgas, quilômetros à frente. Nessa altura o bairro perdia seu status de classe média-média e descia um degrau da escala social. Tudo era desconhecido. Estranhos passavam indiferentes.

Mas avançamos decididos até a terceira dobra, quando desembocaríamos na rua de pedra, o último round. Sorte que aquela quadra era mais conhecida. No fim dela, onde nos encontrávamos, morava o Morocho, exímio violinista e seus dois filhos, amigos nossos. Depois, o temível Walfrido, o perigoso Rato. Em frente ao Rato havia a pacata Dona Noêmia, com chão batido na frente, onde morava a família dos Da Nova, exímios sambistas da escola supercampeã Os Rouxinóis. Quando passamos zunindo pelos Da Nova, palmilhamos o milagre: já era a nossa calçada! O ângulo reto foi a solução encontrada pelo irmão iluminista, enquanto o emocionado barroco destruidor de aves engaioladas amargou o maior susto da sua vida.

Ter nascido em Uruguaiana, RS, numa cidade fundada na régua T, foi um estímulo para buscar o equilíbrio na diferença. Descobri as curvas de Florianópolis em 1971, e no ano seguinte fui morar pela primeira vez aqui, mais precisamente em Itaguaçu, ao lado da casa de Luiz Henrique Rosa, onde ele ensaiava o som da sua banda. Esse foi o vizinho que o destino escolheu para me recuperar, naquela época braba, do medo que sentíamos em cada esquina do país brutalizado. Luiz Carlos, formado engenheiro, chegou aqui antes. Foi ele que me apresentou a cidade.


Nota do Editor: Nei Duclós é autor de três livros de poesia: "Outubro" (1975), "No meio da rua" (1979) e "No mar, Veremos" (2001); e de um romance: "Universo Baldio" (2004). Jornalista desde 1970 e bacharel em História. Trabalha atualmente em Florianópolis, onde é editor-executivo de duas revistas.

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