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SEÇÃO
Crônicas
19/06/2006 - 17h07
Infância
Marco Antonio Araújo
 

O semáforo abriu. O carro arrancou e quase derrubou o moleque franzino que tentava limpar o vidro da frente com água imunda e rodinho. O garoto teve tempo de se apoiar no retrovisor, girar o corpo, evitar o tombo e ouvir a gargalhada do motorista. A moça do carro de trás fez cara de choro e tentou achar algum trocado na carteira para dar ao menino, coitadinho. Mas o velho da caminhonete começou a buzinar que nem louco, a gritar anda logo, e a moça acelerou nervosa, sem ter tempo de entregar o dinheiro. O pivete ficou ali no meio da rua, não deu tempo de voltar para a calçada, os carros passavam voando, ele ficou com medo, não se mexeu, o semáforo não fechava nunca, ninguém diminuía a velocidade. Ele chorou. Era uma criança.

Fechou. Os colegas do menino riram muito e começaram a cantar bundão, bundão, bundão, enquanto tentavam vender balas, chocolates, flanelas e lixas de unha. Ele não parava de chorar e quando viu seu baldinho de água imunda todo amassado no meio da avenida chorou ainda mais. Dessa vez, não tinha nenhuma moça para ficar com pena dele. O homem do carro que parou ao lado do garoto bundão fechou o vidro com pressa e fez de conta que procurava uma estação melhor no rádio que tocava uma música bonita. Jamais lembraria do moleque sujo, descalço, só de calção, que ficou chorando que nem criança no meio da avenida até que o semáforo abriu novamente.

Ele estaria chorando até hoje, ali no meio dos automóveis velozes, se seu irmão mais velho não aparecesse algum tempo depois e lhe desse uns tabefes sem força, quase carinhosos:

- Pára de chorar que nem bobo! Que foi que aconteceu, seu merdinha?

- O baldinho, o carro do moço me derrubou, ele riu, eu tô com medo.

Pegou o irmãozinho pela mão e o levou até a calçada, fazendo cara de quem estava muito bravo com aquela choradeira. Mas não estava. Lembrou do dia em que começou a limpar o vidro do carro de uma madame e ela acelerou um pouco, o suficiente para impedi-lo de continuar o trabalho. Ele fez que não percebeu, se aproximou da janela e pediu uma ajuda, por favor. Ela olhou com ódio, no fundo do olho dele, virou o rosto e começou a fechar o vidro. Foi sem querer, mas ele sussurrou "sua vaca", apoiou uma das mãos na janela, ela ficou assustada, pensou que era um assalto, quase entrou em pânico, escancarou a boca de susto e ele, bem, ele nem tinha planejado nada, só teve tempo de levantar o rolinho de passar água imunda com sabão vagabundo e esfregar na cara dela, dentro da boca também. Só que foi sem força, enquanto a janela subia, devagarinho. Deu as costas para o carro e voltou, calmamente, para a calçada. Ficou imaginando a reação da madame e, sem perceber, abriu um sorriso forte, gostoso, grandão.

Teve vontade de contar a história para o irmãozinho que chorava. Quem sabe ele achasse graça também. Mas não soube bem por quê sentiu uma tristeza doída e não disse nada. Pegou umas notas miúdas no bolso da bermuda e pôs na mão do pequenino.

- Vai comprar sorvete no velho da esquina e pára de chorar.

- E o baldinho?

- Fica com o meu.

Parou de chorar. Sentiu um negócio diferente pelo irmão mais velho, que sempre batia nele. Não sabia que era ternura, gratidão. Enxugou as lágrimas no ombro nu e saiu correndo, pensando no picolé. Alguns metros depois, lembrou de perguntar ao irmão como é que ele ia ficar sem o baldinho. Quando se virou e começou a voltar, já tinha até decidido devolver o presente e dividir o sorvete. Foi aí que ele viu o irmão correndo no meio dos carros, tentando enfiar o rolinho pelas janelas, enquanto com a outra mão segurava o balde esmagado. De longe, parecia que estava rindo alto e gritando palavrões. Não dava para ter certeza porque os automóveis passavam buzinando, desviando para não atropelá-lo. Mas ele ia em direção aos carros, dando pulos e segurando o rolinho como se fosse espada de herói de TV.

Todos os garotos do cruzamento assistiam à cena. No começo, todo mundo ficou assustado, achando perigoso, mas o troço começou a ficar engraçado e eles passaram a olhar com calma e depois já estavam torcendo pelo toureiro do rolinho que se desviava dos automóveis e dava estocadas precisas na cara daquela gente que não entendia nada e que para não atropelarem o garoto davam freadas bruscas e iam trocando de faixa, quase batendo nos carros que vinham ao lado, dando a impressão que estavam com medo ou fugindo daquela criança louca correndo no meio do cruzamento.

O irmãozinho não achou graça. Estava apavorado. Mas não chorou. Entendeu tudo. Apesar do medo enorme, nenhuma lágrima saiu dos seus olhinhos assustados, nem mesmo quando ele viu o carrão branco bater com força no seu irmão e jogá-lo em cima do Chevette velho que freou com tudo, engatou de novo e nem quis saber do corpo do pivete estendido na rua, sangrando.

Ninguém pensou em socorrer, afinal ia dar o maior trabalho, aquela perda de tempo no hospital, delegacia, o garoto parecia louco mesmo, e não passava de um moleque de rua, devia ter cheirado todas, mais cedo ou mais tarde ia morrer, quem sabe em um assalto ou de drogas, de Aids porque desde cedo eles já fazem sacanagem, trabalho eles nunca querem, gostam é de viver nessa vadiagem, o pai com certeza é bêbado, a mãe sabe-se lá por onde anda, tem mais é que morrer, um bandido a menos, é tudo vagabundo, e a lei ainda protege, por mim morriam todos que cadeia é pouco pra essa gente, o senhor não acha?

O irmãozinho ficou um tempão parado na calçada, com os trocados do sorvete na mão, o olhar fixo no corpo por tão pouco tempo amigo. Caminhou devagar até se ajoelhar ao lado dele, que não se mexia mais. O rolinho ainda estava preso, firme, na mão: a espada do super-herói que morreu no fim. Pensando nisso, que o vilão da história venceu, pegou o rolo e quando se levantou já não era mais um menino. Sentiu uma raiva grande do mundo, cheio de bandidos e homens maus que maltratavam as crianças pequeninas. Decidiu ser forte o resto da vida, não ia mais chorar na rua que nem bundão, só para lutar contra os inimigos poderosos que mataram seu irmão. Eles iam ver.

Quando voltava para a calçada, seu andar já era mais duro, nem lembrava do sorvete, do baldinho, dos trocados. Não olhava para nada. Segurava a espada de rolinho com confiança e a colocou na cintura, dentro do calção.

Observando à distância, um dos homens maus que passava por acaso dentro de um carrão importado e parou para ver a confusão, olhou o menino se afastando e percebeu que ali ia um super-herói. Mesmo de longe, dava para reconhecer, na cintura do moleque, uma arma. Pela forma como a criança segurava o objeto na cintura, só podia ser um revólver. Sentiu medo.


Nota do Editor: Marco Antonio Araujo é jornalista, ex-professor e coordenador de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero. Trabalhou nos jornais A Voz da Unidade, do PCB; A Gazeta Esportiva, onde foi diretor de redação e criou as revistas Educação, Língua Portuguesa, Fera! e Ensino Superior.

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