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Crônicas
07/07/2006 - 11h22
A guerra de chuteiras
Christian Rocha
 

Pouco importa quem vencerá a Copa do Mundo deste ano. Entre 32 seleções, apenas uma poderá dispensar as metáforas e os títulos morais para ser considerada vencedora, pois terá em mãos a taça que representa a vitória absoluta. Para trás ficarão 31 seleções que investiram trabalho, tempo e dinheiro numa competição de objetivos duvidosos - entre outros, determinar qual país tem a melhor seleção de jogadores de futebol.

Jornalistas, filósofos, esportistas e outros apaixonados pelo futebol podem dizer à exaustão que o espírito esportivo estará acima do espírito competitivo e que a Copa, assim como as Olimpíadas, representa a união dos povos em torno de um objetivo comum; haverá sempre aquele que afirmará "quem disse que o importante é competir provavelmente foi derrotado" e com isso demonstrará a verdadeira essência do esporte. Através da competição determina-se quem é o melhor em uma determinada atividade e a partir daí monta-se uma escala de qualidade. Tento imaginar a verdadeira função dessa escala, já que o esporte vive para si mesmo e para o estabelecimento de salários milionários e moralmente ofensivos a pelo menos 90% da população mundial, mas isso é outra história.

Imaginemos situações mais cotidianas e suas eventuais implicações competitivas.

No trânsito não há espaço para a competição - embora alguns tentem contrariar essa regra de ouro. Ao contrário, a prudência e a cooperação são virtudes que prolongam as vidas dos motoristas que as têm.

No trabalho a competição é muito estimulada, às vezes entre profissionais de uma mesma empresa. Acredito que isso acontece mais por uma distorção da principal função da competição (melhorar a qualidade do trabalho realizado) do que por simples desconhecimento das possibilidades da cooperação. Independentemente de qual seja a razão da competição profissional, todo trabalho seria mais justo e eficiente se fosse baseado na cooperação.

No dia-a-dia, acredito que a maioria de nós apoiaria uma pessoa que nos pede ajuda em vez de, num espasmo de insanidade competitiva, lançar-se à frente dela celebrando as próprias capacidades. Imagine a cena: uma senhora idosa aguarda por muito tempo o momento mais adequado para atravessar lentamente uma movimentada avenida enquanto você, pleno de saúde e energia, simplesmente a atravessa em poucos segundos, fazendo piruetas e, ao final, batendo no peito e urrando de empáfia pela vitória sobre os incapazes. É evidente que ninguém faz isso - o que seria, como se disse, uma insanidade -; creio que a maioria se anteciparia em auxiliar a senhora na travessia. Contudo, em algum grau todos nós competimos com as pessoas que estão ao nosso redor, seja por auto-afirmação, seja pela afirmação da incapacidade alheia. Se essa postura parece tola e desumana no trabalho, no trânsito e no contato social, por que ela se torna digna de aplauso quando é acondicionada em estádios ou ginásios?

É fácil perceber uma distância entre aquilo a que o esporte se propõe e sua realidade. Seu objetivo mais importante é, através de suas diversas modalidades, estimular a saúde do corpo e a integração de pessoas em torno de atividades específicas. Neste sentido, por exemplo, o esporte torna-se um elemento central numa sociedade como a nossa, composta por obesos e sociopatas. No entanto, sua realidade é a competição, que classifica os esportistas como vitoriosos ou derrotados, criando o mal-estar e a angústia que antecedem os torneios de qualquer espécie. Ao derrotado, resta digerir a imagem de um adversário vitorioso e lapidar seu fracasso para a próxima competição; ao vitorioso, restam a comemoração entorpecente, a inveja alheia e a neurose de permanecer no topo.

Qualquer que seja o resultado da Copa, sua principal função terá sido esquecida. A saúde decorrente da prática do futebol dará lugar às notícias de ligamentos rompidos em divididas grosseiras. O amor pelo esporte estará escondido sob o amor pela camisa, cujo brasão é sempre menor que o logotipo do patrocinador. A sociabilidade que o esporte estimula será substituída pela sede de vencer ou, tanto pior, pela sede de derrotar. O sentimento fraterno, raro entre torcidas e seleções, ainda que todos estejam unidos em torno do esporte, desaparecerá completamente. Em seu lugar, estarão nas primeiras páginas dos jornais a imagem dos vencedores com a taça nas mãos e os derrotados de cabeça baixa. O que há de mais estúpido no esporte mundial do que a rivalidade entre os atletas?

Tudo isso parece muito estranho num século que pretende humanizar aquilo que foi desumanizado através do darwinismo social. Ao mesmo tempo em que se criticam os "tubarões capitalistas" e todos aqueles que recorrem à competição exagerada nos meios profissionais e sociais, esse espírito é celebrado mundialmente a cada dois anos, em Copas e Olimpíadas, sob aplausos e com aprovações de todo tipo. Com isso abandonamos nossa principal capacidade, a de transcender nosso lado animal e construir uma sociedade justa e harmoniosa.

Houve uma época em que as guerras eram importantes instrumentos diplomáticos, não obstante as mortes numerosas e a ruína de países inteiros. Foram necessárias duas guerras mundiais para que o homem se afirmasse como um ser civilizado e condenasse as guerras como fatos abomináveis, recursos últimos quando nada mais serve para fazer valer a moral e a justiça. Apesar disso, o espírito guerreiro ainda vive: ontem, o front, o fuzil e o capacete; hoje, o gramado, a bola e um par de chuteiras.


Nota do Editor: Christian Rocha vive em Ilhabela, é arquiteto por formação, aikidoka por paixão e escritor por vocação. Seu "saite" é o Christian Rocha.
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