Mais do que nunca, cremos ser fundamental refletirmos sobre essa atitude humana que é o mentir. Reflexão esta que não deve ser tão só norteada pelo cabedal conceitual que nos é fornecido pela ética e pela ciência moral, mas também pelas ciências sociais. Tal afirmação parece ser descabida, mas não é. A mentira é um fenômeno social deveras interessante visto o fato de ser uma forma de representação social da realidade com pretensão de fazer-se “a realidade”, visto que, todo bom mentiroso quando se pronuncia afirma estar trazendo a tona “a verdade” com “v” maiúsculo e com direito a vários pontos de exclamação, não é mesmo? Pois bem, diante disso, primeiro ponto que desejaríamos chamar a atenção é para o que denominamos por posição do discurso dentro do espaço discursivo. Quando lemos ou ouvimos alguma declaração, é interessante que atinemos nossa percepção para a posição que o discurso ocupa dentro da geografia do poder. Dentro desta organização dos espaços há aqueles que estão (ou pelo menos se sentem) autorizados a falar em nome da sociedade e que, por essa razão, podem despejar qualquer fala, mesmo desprovida de conteúdo para assim chamar para si a pecha de veracidade. Tudo vale quando se está falando em nome do povo. Tal articulação é possível através da: (a) boa sintonia do discurso enunciado para com os valores comungados pela sociedade, ou (b) da utilização de termos carregados de teores pedantes e emotivos, ou (c) aproveitando-se do total ou parcial desconhecimento dos fatos enunciados pela parte da massa ouvinte, ou (d) fazendo-se valer das prerrogativas (símbolos de poder) auferidas ao indivíduo que lhe dá ares de autoridade inatingível e (e) a desqualificação de seus possíveis adversários fazendo destes bodes expiatórios exemplares. Se formos prestar atenção aos discursos preferidos a arena política de nossa Pátria, veremos sempre essa articulação que é deveras interessante em sua maquinação maquiavélica. Qualquer crítica transforma-se em conspiração ou em calúnia infundada, qualquer auto-defesa, por si só faz-se apolínea, sem haver a necessidade de uma devida comprovação dos fatos (José Dirceu e companhia são exemplares nestes casos). Muito bem, Ieda Tucherman no seu texto que integra a obra “Práticas discursivas na cultura contemporânea” (pág. 62) nos lembra que: “Para estabelecer a identidade é necessário tornar-se um parâmetro que permita caracterizar identidade e diferença. A exclusão de um elemento é aquilo que delimita a fronteira do conjunto identitário e assim a alteridade é a antítese que determina a identidade”. Trocando por dorso: todo discurso que é declarado como sendo “o verdadeiro”; tem sua veracidade tolhida com a presença do discurso que é tido como inverídico e, por essa razão que este passa a ser desqualificado sem mencioná-lo e, em seguida, colocado em ostracismo e neste exílio do ambiente público, nesta sua inexistência, ele passa a existir. Todavia, não como discurso que se assenhora de sua fala, mas enquanto fala determinada por aquele que ocupa o lugar central do poder. Parece absurdo, mas não o é quanto passamos a compreender a prática do mentir como sendo uma instituição social que funda e ordena a vida em sociedade, pensando esse dito dentro de uma perspectiva sociológica, obviamente. O leitor deve estar se perguntando: “como assim?” Simples: uma mentira só é reconhecida e eleita como tal quando esta fala não é socialmente aceita, quando o corpo societal não consegue identificar nas palavras proferidas a visão da Verdade. Entretanto, uma fala, mesmo que sendo inverídica, que esteja em sintonia com o imaginário coletivo, que esteja em consonância com os valores que permeiam a opinião pública, não será de modo algum vista como sendo uma mentira, visto que, esta seria o embuste socialmente aceito. Tal prática social é facilmente visualizável quando refletimos sobre as falas cotidianas onde, quanto o mentiroso socialmente incluso é “descoberto” logo se defende afirmando que ele de modo algum mentiu, mas que apenas omitiu a verdade, que ele acreditava ser algo irrelevante, que ele achou desnecessário contar tudo porque ele não queria criar problemas, que ele está farto e/ou chateado com toda esta situação ou então, que ele não sabia de nada. Infeliz daquele que tem o seu discurso deslegitimado, visto que, na seara pública, a deslegitimação dá-se apenas pelo silêncio imposto o que, de um certo modo, é uma construção pré-concebida com vistas a fazer com que a “vítima” do pré-conceito assimile a imagem que lhe foi auferida, visto que, a dignidade humana, mesmo sendo um valor em si, tem que ter a permissão e o reconhecimento social da parte do grupo em que o indivíduo está inserido, conforme nos explica Peter Berger em sua obra “Perspectivas Sociológicas” (pág. 116 – 118). Exemplo deste tipo de situação que pode ser vivenciada por qualquer ser humano encontra-se claramente exposto na vida de Sócrates, em especial, em seu julgamento. Este enunciou uma Verdade em si, mas o corpo societal da Atenas daqueles idos não reconhecia a Verdade enunciada por este o que, por sua deixa, o levou a condenação capital. Obviamente que Sócrates não fora único. Se todas as pessoas compreendessem a velha lição platônica que nos ensina que o primeiro na categoria do conhecer é o último na categoria do Ser com toda certeza todas essas questões geradas em torno do mentir não seriam necessárias. Mas, como o deleite nos átrios do saber não são tão palatáveis quanto os manjares da futilidade cotidiana, estes segundos acabam sempre sendo autorizados enquanto fala instituída, como sendo uma fala válida e respeitável. Há uma piadinha russa que nos diz que sabemos quando um político está mentindo quando ele abre a boca. Tal gracejo serve como uma luva em nossa triste realidade política hodierna onde a verdade fora totalmente abolida em nome da mentira instituída socialmente e, de tanto repetida torna-se tão verossímil quanto qualquer verdade alijada de seu posto. E, de mais a mais, quem quer saber a verdade em uma sociedade que adota como lema a “lei de Gerson”, onde o “se dar bem” é o que importa no fim das contas? No final das contas, J. A. Barnes em sua obra “Um monte de mentiras – por uma sociologia da mentira”, nos lembra de modo pontual as palavras de Simmel dizendo quanto a mentira que: “Quanto mais distantes estão os indivíduos apartados de nossa personalidade mais íntima, mais fácil se torna para nós chegar a um acordo com a falsidade deles, tanto num sentido psicológico íntimo quanto num sentido prático – ao passo que, se algumas pessoas próximas a nós mentem, a vida torna insuportável. [...] mostra que as medidas de veracidade e falsidade que são compatíveis com a existência de certas condições constituem uma escala na qual podem ser lidas as medidas de intensidade dessas condições”. (pág. 226) E, deste modo, a mentira seria: “uma técnica para a restrição da distribuição social do conhecimento no decorrer do tempo e, em última análise, inscreve-se no sistema de poder e de controle da sociedade”. (pág. 227) E, deste modo, em nossa sociedade, mais do que em qualquer sociedade, a mentira tem uma espécie de “foro privilegiado”. Afirmamos isso, pois mesmo que tenhamos todos as evidências apontando para a macaqueação de mentiras, nós continuamos a fingir que tudo sempre foi e sempre será assim ou talvez assado. Aliás, os mentirosos instituídos com direito a fala com ares de veracidade, adoram atirar a pecha de mentirosos em seus detratores tentando transformar evidências e/ou informações imprecisas em mentiras escabrosas. Por fim, diante de todo o exposto, uma última dica talvez seja ainda valiosa. Os mentirosos politiqueiros de toda estirpe sempre seguem a risca os conselhos dados por Lênin e Goebbels (mesmo sem conhecê-los) que instruíam as suas hostes a repetirem infinitamente suas mentiras até que a razão canse-se delas e passasse a adotar os seus engodos como “a verdade onisciente”. Se algo é em demasia repetido em seus ouvidos e você, distraidamente, se vê repetindo-as, cuidado, pois você está sendo instrumento pútrido nas mãos de um hábil e malicioso mentiroso e, a malícia nada mais é que o principal ardil das potestades das trevas.
Nota do Editor: Dartagnan da Silva Zanela é professor e ensaísta. Autor dos livros: Sofia Perennis, O Ponto Arquimédico, A Boa Luta, In Foro Conscientiae e Nas Mãos de Cronos - ensaios sociológicos; mantém o site Falsum committit, qui verum tacet.
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