As grandes revelações vêm nos momentos em que o espírito está doente. Há várias semanas sinto que minha cabeça não está funcionando direito, devido ao stress proporcionado pelo fracasso nas vendas. A pressão familiar aumenta, o medo de cair na rua por inadimplência com a imobiliária se multiplica. Os cabelos lavados com sabão de toucinho e barba por fazer tornam cada vez mais difícil mostrar um rosto sereno no momento de realizar um negócio. Estamos nos tornando vegetarianos, por força da circunstância e para a sorte dos bichos. Deus escreve direito pelas linhas que os homens entortam. Na economia doméstica, descobre-se que a prática da vida é muito mais sofisticada que a filosofia. Aqui, sempre que se chega ao fundo do poço, pode-se descer mais alguns degraus. Nas ruas vejo os veículos relampeando de novos com etiquetas agradecendo ao Senhor. "Propriedade de Jesus", diz uma Mercedes. Essas contradições começam a trazer dúvidas ao meu antigo coração cristão. Já fico pensando que, se, por merecimento devido aos dias que passo, eu pisar o jardim do Éden, será justo exigir benefícios retroativos. Mas ainda creio, piamente, que, se Jesus me amasse, dar-me-ia um Porsche em vez de uma carroça. Para minha sorte, vi a propaganda do governo, que pretende viabilizar crédito para pequenos empreendedores. Vesti a melhor roupa, presente de uma tia que sempre nos dá camisas pólo no Natal, e fui conversar com o banco, onde descobri que os pretendentes ao empréstimo precisam ter bons antecedentes financeiros. Em suma, não pode deixar transparecer que possui aqueles adereços comuns à "classe baixa", como dívidas, títulos protestados e, o pior, falta de patrimônio para dar como garantia ao "Banco do Povo". Resta, então, ao estressado, a alternativa de pedir esmola. Prepara-se, com sofreguidão, para investir seus últimos esforços na boa-vontade do cidadão brasileiro, solicitando que ele colabore com a outra campanha do governo, aquela denominada "redistribuição de renda". Porém, antes de sair à rua para essa nova empreita, lembra que possui inúmeros irmãos, cunhados, primos, tios e sogros. Dentre eles, vários foram contemplados com o prêmio da sorte em seus empreendimentos, e possuem todos aqueles requisitos essenciais a qualquer cidadão que queira disputar o concorridíssimo status de "gente de boa família". Por que, levando isso em conta, sair à rua em busca de benefícios de estranhos, se os recursos essenciais à sobrevivência encontram-se no úbere do próprio clã? Começam os telefonemas. Mas como solicitar a esses espíritos apressados que diminuam o passo e olhem para o esmoleiro que estende o chapéu? Não é tarefa fácil, como pareceu no princípio. Pedir caridade é uma arte, comumente praticada por diversos grupos de adeptos às filosofias orientais, onde mesmo indivíduos razoavelmente abastados deixam por momentos suas vestes opulentas e se travestem de humildes merecedores da compaixão alheia. Para chegar a esse ponto, é necessário a prática intensiva da meditação, jejum e renúncia aos prazeres da carne. Na maioria dos casos, nem ovos, nem leite, mesmo os disfarçados em iogurte e manteiga, entram no cardápio. Mas a mesa está vazia, passou-se as últimas semanas a pão e água. No outro lado da linha uma voz feliz responde, quanta saudade, estávamos há muito aguardando o seu telefonema, me diga, como vai a sua família? Se você disser tudo bem, perde a chance de colocar a situação, além do que, se depois quiser mudar o rumo da conversa, passará por mentiroso. É aconselhável ir dizendo de chofre "estou lhe trazendo uma oportunidade única de colaborar com o projeto de redistribuição de renda do governo, com possibilidade de desconto no imposto", ou simplesmente "estamos passando fome". Seja qual for a estratégia em demanda, o tom da voz do receptor já mudou. Está sério, realmente enternecido com a situação do parente pobre. Mas você o ajudou em épocas passadas, não é agora que ele vai deixá-lo na mão. Infelizmente, a esposa acabou de comprar um carro novo, sabe aquele modelo de BMW desenhado por Herbert S., pois é, as prestações estão um absurdo, mas me passe por favor o número da sua conta que amanhã mesmo vou lhe mandar cenzão. Nem pense em protestar. Imagine, antes de qualquer crise de nervos, o tamanho do carrinho de compras que lhe possibilitam cem reais. Seja educado e agradeça cordialmente, já prevendo transações futuras. Não tente novo contato antes de seis meses, caso contrário será tido na família como um vagabundo confesso. Porém, não se iluda com a discrição do seu benfeitor. Já amanhã toda a comunidade familiar estará sabendo, afinal de contas, não é todo dia que o primo rico pode socorrer o pedinte da família. Mas o fato é que o stress está instalado. A geladeira está repleta, mas você sabe que se esvaziará rapidamente e a fonte está seca. Compreende-se, então, que a expressão "dignidade" está associada ao trabalho devido aos benefícios financeiros que ele proporciona, e não porque seja um bem em si. O stress começa a esborrifar gordura nas paredes, na atmosfera, nos olhos. Quanto mais diminuem os recursos, mais se apela para as frituras. O reaproveitamento de alimentos exige esforço dobrado da frigideira. A casa está cheirando a cebola e óleo reaproveitado. O pão se come até a última casca. A banana, idem, agora que descobriram as qualidades nutritivas de seu envoltório. À noite vêm os pesadelos, pelo estômago empanzinado e pelo desequilíbrio osmótico das meninges. No estado mórbido, como se o cérebro estivesse entupido de drogas, o sonho ganha dimensões hiper-realistas. Sonha-se o sonho dentro do próprio sonho. A carne e a mente vibram, em uníssono, buscando escapar da arapuca, revelando as tonalidades vivas do sofrimento. O processo de cura vê-se dentro de si mesmo. As informações dos últimos meses estão sendo rapidamente reorganizadas em suas respectivas datas, numa seqüência lógica que permitirá ao cérebro acessar mais rapidamente, em caso de extrema penúria, as informações relevantes. Quadros coloridos multiplicam-se, em forma de textos, quadros de pintura, imagens de televisão, quasares, fractais, situações cotidianas, a fome, o calor, o vento, a cédula, o medo... - Acorda, amor. - Ãh!? O que houve? - Você estava tendo um pesadelo. Estava gemendo! - Não pode ser. O desfragmentador é silencioso. - O quê? - Deus está passando desfragmentador de disco na minha cabeça. É por isso que não estou tendo sucesso com as vendas. Enquanto o disco não desfragmenta, não é possível acessar a máquina. - Durma.
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