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Crônicas
11/07/2006 - 17h11
Nunca mais verás as cores da Primavera
Ivani Cunha
 

Estava escrito que no primeiro dia da Primavera, uma quarta-feira de setembro, o cidadão Pacífico lançaria na escuridão um certo marginal que abordava motoristas no sinal em frente ao Conjunto do IAPI, no bairro São Cristóvão.

Na noite anterior, Pacífico esperou que a mulher e os filhos se deitassem para cuidar tranqüilamente de alguns preparativos. Primeiro, buscou na lixeira uma embalagem vazia de desodorante barato. Em seguida, fechou-se no banheiro e pegou, no armário, uma seringa de agulha rombuda, adequada para seus propósitos. Sem fazer barulho, ajeitou os objetos sobre a pedra do lavatório. Do bolso da calça tirou um vidro com tampa de borracha por onde introduziu a agulha. Nunca havia aplicado injeção, mas naquele momento concluiu que levava jeito, pois saiu-se bem no trabalho: puxando a haste aos poucos, encheu a seringa com o líquido de cor indefinida e, imediatamente, retirou-a e introduziu a seguir no bico da embalagem de desodorante. Agora ele injetava o líquido na embalagem. Repetiu a operação umas três vezes até transportar tudo para o novo recipiente. Depois saiu do banheiro, buscou no quarto escuro a pasta de couro que deixara semi-aberta e ajeitou dentro dela a embalagem de desodorante com o líquido e o vidro vazio. O resto ficaria para o dia seguinte.

Pacífico vira aquele marginal em ação algumas vezes. Negro, alto, cerca de 20 anos, o sujeito usava sempre os mesmos tênis velhos e a mesma bermuda amarela com um risco azul bem fino de cada lado. A camiseta, também sempre a mesma, era vermelha. Ficava sentado na mureta de concreto construída sobre o passeio central da avenida Antônio Carlos, em frente ao conjunto do IAPI. Suas vítimas eram os motoristas desatentos, que não se lembram de levantar o vidro; melhor ainda se fosse mulher desacompanhada. Ele se aproximava do carro no momento em que o sinal passava do amarelo para o vermelho, e logo enfiava a cara na janela com a ameaça: "Entrega o dinheiro numa boa, isso mesmo, a grana que está ali na sua bolsa." A vítima fazia o que a polícia sempre recomenda: entregava a carteira e, às vezes, também o relógio e o celular para o bandido, até porque não sabia se numa das mãos (ambas ficavam abaixadas do lado de fora, ao longo da porta), o outro levava um revólver ou uma faca. O homem se afastava rapidamente com o fruto do assalto e subia correndo a outra pista da avenida; depois, andando normalmente, agora na esquina de uma rua que dá acesso à favela, passava sob uma guarita da PM antes de desaparecer.

Pacífico assistira a essa cena diversas vezes. Andava com o pressentimento de que um dia seria a vítima do bandido. Um pressentimento tão forte que ele passou a desejar um confronto com o marginal para acabar de vez com a cisma. O cidadão está retornando a casa no horário de costume e já conferiu várias vezes a embalagem de desodorante colocada de manhã no porta-objeto sem tampa, à esquerda do volante. A um quarteirão de distância, avista o negro sentado na mureta, balançando as canelas finas. Reduz a marcha para encontrar o sinal vermelho. O carro pára, o sujeito logo se aproxima e apóia as mãos na porta para impedir que o motorista levante o vidro. A arma, caso exista, está debaixo da camiseta imunda. O assaltante repete a conhecida cantilena, como se fossem as únicas palavras que aprendeu na vida: "Passe a grana numa boa, rápido, ali na pasta." Pacífico finge surpresa e medo: "Calma, calma, o dinheiro não está na bolsa, eu vou pegar aqui." Enfia a mão no porta-volume, pega a embalagem de desodorante e, rápido, vira-a na direção do bandido, pressionando com força o plástico. Quase toda a carga do ácido atinge os olhos do assaltante, que solta um rugido de dor, afasta-se com as mãos no rosto em fogo e cai no passeio. O sinal abre e Pacífico acelera, vendo pelo retrovisor aquele homem que acaba de perder, para sempre, o privilégio de ver as cores da Primavera.


Nota do Editor: Ivani Cunha é mineiro de Belo Horizonte. Jornalista desde 1970. Foi repórter e editor do Diário do Comércio. Repórter e noticiarista (de Economia) e depois subeditor e editor de Agropecuária do jornal Estado de Minas; editor da Rede Globo em Belo Horizonte; editor do Hoje em Dia (participou da equipe de criação deste jornal); editor de economia do jornal Minas Gerais e da revista Minas Gerais, editados pela Imprensa Oficial do Estado; trabalhou na Assessoria de Comunicação Social da Fundação João Pinheiro e atualmente integra a equipe de comunicação da Secretaria de Estado de Agricultura de Minas Gerais. É revisor ortográfico e tem três livros infantis publicados pela Editora Armazém de Idéias: "Virtudes para Crianças"; "O Santo que Virou Índio", sobre o Padre José de Anchieta; e "O Sonho de Beto Pardal", sobre Alberto Santos Dumont.

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