O Livro Original era um alimento de origem animal. Após mais de três anos de trabalho, imprimi o projeto do Livro Original e encaminhei a uma editora famosa, braço literário de uma das maiores publicadoras de livros jurídicos do Brasil. O livro continha textos curtos, cada um deles acompanhado da respectiva ilustração. O conselho editorial aprovou a obra e solicitou o encaminhamento dos originais. É agora! pensei. Deu certo! Finalmente poderei ganhar a vida fazendo o que gosto: escrever e desenhar. Mandei os originais e o tempo passou. Lembro de ter deitado na rede em muitas tardes, debaixo das laranjeiras, olhando o céu azul e assobiando canções de Sá e Guarabyra. Todas as noites eu sonhava com meu livro ilustrando as vitrines das livrarias do Brasil, aconchegado num daqueles elegantes suportes de plástico, no aguardo daqueles que viriam receber a oferta, levar para sua vida os frutos que colhi em árduas caminhadas, em tantos dias de abandono na busca da frase, do verso, da síntese... Minha irmã ligou para me dar os parabéns. Folheando os novos lançamentos de uma livraria, descobriu que meus desenhos haviam sido publicados no livro do secretário de Segurança do Rio de Janeiro! Perdi as pernas naquele momento. Senti algo parecido com o instante em que minha filha de 7 meses levantou do carrinho e foi de cabeça na lajota da lavanderia. Ficou amontoada no chão e eu com aquela sensação de morte. Quando soube do roubo dos meus desenhos, senti, pela primeira vez, que eu também podia ser ferido. Passei os dois anos seguintes sem conseguir escrever uma linha. Muito menos desenhar uma linha, um traço qualquer. Não havia motivo, objetivo, não havia esperança. Quando encaminhei o processo, a editora retrucou dizendo que eu deveria estar feliz por ser publicado no livro de um indivíduo renomado. Também argumentou que, se acaso a sentença me fosse favorável, que o juiz não determinasse o pagamento de uma grande quantia (por roubo de direitos autorais), visto que eu era "pobre", e que um processo desse gênero não deve servir para que o acusador enriqueça. Pode parecer absurdo, mas é isso mesmo que diz a lei brasileira: se o indivíduo lesado for milionário, poderá pedir uma indenização milionária, pois isso não significará uma alteração no seu nível sócio-econômico. Mas se for pobre, terá de contentar-se com as migalhas a que está acostumado desde sempre, ainda que a ação tenha-se gerado da tentativa de matar seu espírito! A obra do secretário não é ruim, pelo contrário, é uma boa compilação da nova filosofia européia respectiva a educação, vida, morte, política, ecologia etc. Mas poderia ser um livro nazista, terrorista, machista, racista, tudo que não pretendo ser e muito menos apóio. Meus desenhos ajudaram a compor uma obra que poderia defender o assassinato, o preconceito, o ódio, a destruição, embora tenham sido feitos para ilustrar meus textos, que falam de amor, liberdade e esperança. Acreditava que com as ilustrações poderia vender com mais facilidade minha literatura, ainda que não me considere grande ilustrador. Eu também tenho minhas filosofias, colhidas em árduos anos de lutas, e não importa se um dia elas serão publicadas e farão parte do acervo humano. Importa é que tais idéias nasceram dentro da minha cachola, dentro da minha carne, dentro da minha pele, vazaram feito lágrimas e sangue, e agora vem o advogado dizer que devo ficar orgulhoso porque um bando de ladrões associou meu trabalho a um sujeito famoso! O caso arrastava-se há mais de cinco anos. Ganhei a ação, o caso "transita em julgado" desde maio do ano passado, mas a editora famosa que publica autores famosos e que roubou meus desenhos continua impune. O autor já vendeu o livro, encheu os bolsos, comprou um terno novo, mas eu... Desabafo inútil. Não tive um prazer qualquer. Senti apenas vazio, solidão e desconsolo. Perdi meu fogo, minha certeza de que trilhava um caminho de luz. Tive de me virar para continuar lúcido. Aguardo a realização final da Justiça, quando a tal editora finalmente pagará pelo seu crime.
|