A guerra de manifestos pró e contra as cotas raciais nas universidades públicas pode ser interessante o quanto se queira, mas os participantes esquecem de mencionar que todo esse debate gira em torno de uma coisa só: como gastar o dinheiro dos outros. No fim das contas, toda benemerência governamental consiste precisamente em fazer de conta que dá aquilo que na verdade toma. No episódio, o detalhe cruel da palhaçada aparece quando se faz a pergunta que até agora ninguém fez: toma de quem? Que eu saiba, os negros e mulatos constituem uns 75 milhões de pessoas, quase a metade da população brasileira. Desse oceano de gente, só uma parcela ínfima vai desfrutar do benefício das cotas: os demais vão ficar trabalhando, pagando imposto para sustentar a bondade oficial, enquanto a propaganda petista trata de animá-los com a ilusão de que o dinheiro não está sendo arrancado deles, e sim apenas da "elite branca egoísta". Qualquer congressista que apresente um projeto de lei pretensamente humanitário sem esclarecer de onde virá a verba para custeá-lo e sem provar que a lógica da idéia não é a do moto-perpétuo, deveria perder o mandato. Não há mais autêntica falta de decoro parlamentar do que posar de Papai Noel dando ao povo o que já era dele - após os devidos descontos, é claro. Um exemplo característico são as campanhas destinadas a persuadir as pessoas a não dar dinheiro para os pobres, mas sim ao governo, o qual, descontados os salários dos encarregados e as demais despesas funcionais e administrativas, dará aos pobres o que sobrar, acrescentando-lhe generosamente um folheto de propaganda petista. A lei das cotas é mais ou menos isso: arrancar o couro da população pobre para fabricar com ele o cabresto pedagógico com que se vai guiá-la politicamente. Não que a idéia de reparações, em si, seja errada. Ela faz algum sentido, em teoria, desde o ponto de vista da justiça abstrata. O problema é que o ônus da justiça abstrata recai sobre seres humanos concretos. No caso das reparações raciais, é inevitável que a passagem do tempo acabe jogando a dívida para as costas de quem jamais a contraiu - por exemplo imigrantes que chegaram ao Brasil já no Século XX, que jamais tiveram escravo nenhum e que, para cúmulo de ironia, vieram fugidos de regimes que os submetiam a trabalho escravo, na Alemanha, na Rússia, na Polônia, na Hungria. Nenhum deles, decerto, se recusaria a fazer sacrifícios para dar aos netos e bisnetos de africanos uma vida mais decente. Pelo simples fato de terem sofrido tanto, compreendem o sofrimento alheio. Mas como chamar de "justiça" uma lei destinada a fazer escravos recém-fugidos pagarem pelos sofrimentos de outros escravos que foram libertados vinte, trinta, quarenta anos da chegada deles? Se, da massa dos contribuintes, você descontar os descendentes de africanos e de imigrantes europeus, vai sobrar muito pouca gente para arcar com a despesa das cotas; se os incluir de novo, instituirá a injustiça contra estes e a trapaça contra aqueles. Pode-se tentar escapar dessa fatalidade apelando ao subterfúgio lingüístico de declarar que a responsabilidade pela despesa incumbe "à sociedade". A própria Constituição de 1988 usa desse delicioso expediente. Mas "a sociedade" é apenas um universal abstrato, juridicamente mais inimputável do que um menor de idade ou um habitante de reserva indígena. Quem vai pagar mesmo são os negros, mulatos, alemães, poloneses, judeus e tutti quanti. E alguns deles ainda vão levar na testa o rótulo de "elite branca". É claro que essas sutilezas lógicas escapam aos nossos legisladores e "formadores de opinião". Felizmente, não tenho a mínima pretensão de que sejam levadas em conta. Nota do Editor: Olavo de Carvalho é jornalista e filósofo nascido em Campinas, Estado de São Paulo, em 29 de abril de 1947. Tem sido saudado pela crítica como um dos mais originais e audaciosos pensadores brasileiros. Professor de filosofia e diretor do Seminário de Filosofia do Centro Universitário da Cidade (RJ). Autor das obras "O Jardim das Aflições" e "O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras". Editor do site Mídia Sem Máscara.
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