Era quase noite quando ela deixou seu quarto. Havia passado o dia todo se sabotando numa procrastinação digna de filme europeu. Caminho até a praia onde ela já deveria estar há muito. Sem prancha, sem lenço, sem documento e quase sem vida não demorou para encontrar seus parceiros de alma, de prancha, de interpretação do silêncio do horizonte entre uma onda e outra. Abaixou a cabeça e sem hesitar entendeu por fim que sabotagem é algo desleal e digno de derrota. Olhou ao redor e viu um dos entardeceres mais belos de sua vida: céu cinza, névoa encombrindo o mar, ondas quebrando por toda a costa, ínfimos pontos pretos andando por sobre as ondas. Respirou fundo e sentiu o ar quente que o mar enviava à terra. Viu golfinhos saltando ao longe, sentiu a maciez da areia acolhendo os seus pés e de súbito parou para deixar o vento acariciar seus longos e enrolados cabelos. Sentiu que queria mais e então começou a despir-se lentamente até ficar completamente nua a bailar pela praia à beira do mar num outono que chega ao fim. Foi neste dia que ela descobriu a Dança do Mar. Foi dançando a dança do mar que correu das ondas, que contou as conchas, que sussurrou ao vento seus desejos profundos, que prometeu a si mesma frente à noite que chegava em seu cavalo alado, que daria o melhor de si para si em amor ao seu eu e ao mundo. Voltou pra casa cantarolando uma música da lama. Lá chegando ascendeu um incenso e saiu de novo, desta vez para dentro da mata em direção à cachoeira como portadora de boas novas. Era preciso contar a água doce o que havia descoberto com a água salgada. Aos poucos o barulho da queda d’água ficava mais forte, o céu mais cinza e o canto dos grilos mais freqüente. Pisou firme nas pedras da mata, subiu barracos com a ajuda dos troncos das árvores, ouviu sussurros de namorados e logo após passar o esconderijo da lua nova chegou aos pés da Majestosa que era o nome da cachoeira. Plantou seu incenso aos seus pés e sem dizer uma palavra chorou lágrimas que há anos estavam trancafiadas em seu peito. Num abraço generoso Iansã acolheu sua filha e leu em seus olhos o amor que ela havia descoberto. Era o amor do mundo que é tão grande mas tão grande que só cabe em peito que está vazio de dor e desassossego. Foi somente ao amanhecer do dia seguinte que ela voltou para casa com uma tiara de folhas na cabeça e uma pedra na mão. Talismãs que só mais tarde, bem mais tarde, ela aprenderia a usar.
Nota do Editor: Paula Tura é escritora, clown e em breve pintora. Mantém o blog: www.mercedesaemergente.blogspot.com.
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