O professor Cardoso beirava os setenta e gostava de tomar umas e outras num boteco colado à estação de Marechal Hermes. Mas sempre sozinho e sem dar papo a ninguém. Escolhia a última mesa do bar, abria um caderno de folhas sem pauta, e escrevia, escrevia muito. Ao sentir a aproximação de um freguês mais abusado, virava porco-espinho embora rosnando como um cão raivoso. Uma tarde, depois de uma copiosa mistura de chope e conhaque, tomei coragem e dirigi-lhe a palavra. - Por que o senhor não escreve em casa? Esperava uma explosão, mas o homem deteve-se na curva de um esse, tenso, controlando-se, e respondeu com um suspiro meio teatral: - Você não entenderia, é muito novo. De fato. Corria 1966, e eu caminhava sem muita pressa para os dezoito. - Conhece Bernanos? - mQuem?! - indaguei, sem acreditar que estivesse disposto a conversar comigo. O professor deu um sorriso e explicou: - Georges Bernanos, escritor francês. Uma pedrada! - E o que tem ele? - perguntei, num esforço danado para não parecer desdenhoso. Lento e presumido, sem desviar os olhos dos meus, tirou do bolso do paletó uma grossa brochura, que até hoje não sei como pôde caber ali dentro. Lá estava, realmente, no alto da capa, o nome do autor, mas engasguei no título. Ele já contava com isso. - "La grande peur des bien-pensants" - declamou, acrescentando: - Aposto que não sabia que eu leio francês... Não sabia mesmo. Quem podia saber alguma coisa sobre ele? De repente, entrei em pânico. Pelo jeito como namorava o livro, acariciando-lhe as páginas, quase obsceno, imaginei que estivesse se preparando para dar uma longa aula sobre o assunto. E então, como um oráculo soturno, lançou uma frase enigmática que nunca mais me saiu da cabeça, a tal ponto que hoje, quarenta anos depois, vejo-me diante da telinha do computador escrevendo este relato. - Quando ’La grande peur’ for traduzido no Brasil - disse ele, todo empolado - será tarde demais. - É tão importante assim esse livro? - indaguei, sentindo um arrepio. - Mudou a minha vida. Nunca mais fui o mesmo. Tive uma idéia. Ia complicar um pouco as previsões dele, mas era uma idéia. - Por que o senhor mesmo não o traduz? Parece que ele preferia apostar na profecia. - Não, não posso. Tenho medo. - Medo de quê? - perguntei, aflito. - "La grande peur" é a biografia intelectual de um anti-semita. Sabe o que é isso, não é? Na época, eu apenas desconfiava. - É bem verdade que não se trata do anti-semitismo nazista, mas de qualquer maneira... Choroso: - É uma pena. - Tudo bem. Mas o senhor meteu esse cara na conversa e acabou não me dizendo por que não escreve em casa. - É uma questão de influência - confessou ele, pomposo, mas numa candura inabitual em quem era tido no bairro como um ranzinza absoluto. - Bernanos gostava de escrever nos cafés de Paris, degustando a sua crème e apreciando o movimento dos transeuntes. Aqui mesmo no Brasil, onde ele esteve entre 1938 e 1945, freqüentava as biroscas de Barbacena e Pirapora, rabiscando em cadernos escolares, comprados numa simples papeterie, obras de arrebentar a alma. E continuou nesse ritmo, desfiando informações de natureza política e religiosa que eu ainda não dominava, num tom bombástico e grandiloqüente não de arrebentar a alma, no meu ponto de vista, mas de arrasar quarteirão. Fiquei bastante impressionado com o tal porco-espinho. Mas para mim o que restou mesmo de tudo isso foi aquele "será tarde demais". A não ser que atribuamos à inexistência de uma tradução brasileira da "Grande peur" todos esses dissabores que se abateram sobre o país, como os vinte anos de ditadura, a tragédia collorida, o sinistro homem dos cinco dedos, o angu-de-caroço petista de 2005, e sabe Deus o que mais... Se não morreu, Cardoso deve estar hoje com cento e dez anos. Acho que nem vale a pena mostrar esta crônica a ele.
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