Noite dessas perdi o sono e fiquei fumando à janela até tarde, no aconchego de uma escuridão que a tudo envolvia, preservava meu anonimato e me qualificava, assim, como privilegiado observador de ocorrências que escapam desde sempre ao registro da História. Ventava de maneira incomum para esta época do ano e uma folha de jornal passou como gaivota tablóide de asas retintas, levando para bem longe notícias que haviam encardido a manhã, mas eram já passado: crimes urbanos, genocídios no Iraque... Ah, não importava mais! Falava-se ali, na certa, de gente queimada, torturada, humilhada, em cujo sangue banqueteavam-se dráculas republicanos da nova era velha; arcaica, melhor dizendo. Fatos hediondos que, no futuro, tornarão inverossímil o estudo da História, tamanho o acinte, a desfaçatez. Depois de a folha passar, uma mulher surgiu na clareira e arrumou junto ao meio-fio tigelas, galinhas azeitadas no dendê, velas, garrafas de cachaça, farofa e fitas vermelhas. Rezou, bateu palmas e afinal tragou-a a escuridão. Foi quando um mendigo esfaimado saiu de trás da árvore. Vinha com o apetite dos milênios e seus dentes de voraz heresia trinchavam os frangos, impunham jejum aos deuses; ao menos, naquela noite. Regalava-se como um dissoluto sem o constrangimento de se saber observado, porque àquela hora os historiadores dormiam. E comeu tudo até empanzinar-se - para ele, um desconforto gástrico de luxo. Aconchegou-se sob a marquise, envolveu-se no lençol de néon que descia do cartaz luminoso e adormeceu em estado de cordura. Bárbaro sem guerras nem carnificina que nunca sairá nos jornais. Nota do Editor: Daniel Santos é jornalista carioca, 54 anos. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
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