As mãos trabalhavam furiosamente. Dedos febris movimentavam-se para cima e para baixo, ora lembrando os de um pianista, deslizando sobre as teclas do órgão, ora lembrando as pernas de uma tarântula, ágeis e perigosas. Estavam enredados no que parecia ser um confuso emaranhado de fios, linhas de cores um tanto distintas. Assim, pelas costas, ficava muito difícil ver com clareza do que se tratava. A luz difusa e branca que penetrava através da porta lateral espalhava muitas sombras pelo aposento, com suas paredes de pedra, desnudas. O lugar todo causava uma sensação de abandono, de frio... mas nada disso parecia atrapalhar o trabalho misterioso que estava sendo feito ali, com tanto afinco. De súbito, a sua atenção voltou-se para algum ponto além da porta. Erguendo rapidamente a cabeça, deixou-se ficar à escuta, o olhar alerta. Pensei que tivesse pressentido a minha presença, mas não. De alguma forma estranha, eu sabia que ninguém podia me ver, não mais... vez por outra um distante ruído de vozes ou de passos chegava aos ouvidos, e mais nada. Ao cabo de alguns poucos minutos de ansiosa expectativa, o trabalho recomeçou. Começava a ficar monótono, exasperante, quase, observar aquelas mãos trabalhando, sem compreender o que de fato estavam tramando. A luz foi se tornando mais fraca, anunciando o crepúsculo, em algum lugar lá fora, e, de alguma forma, fazia crescer o desejo de respirar ao ar livre, sair dali, ver o que se desenrolava do outro lado daquelas paredes. Mas o estranho movimento dos dedos por entre os fios, como que hipnotizante, mantinha tal desejo amarrado ao pequeno aposento. Apenas quando a luz natural se extinguiu por completo, a chama de uma vela acendeu-se, espalhando uma nova claridade pela mesa e pela figura tensa, persistente, curvada de maneira vagamente graciosa sobre o emaranhado de fios. E só então se revelaram, com nitidez, os traços delicados de uma jovem mulher, coberta, do pescoço até onde era possível ver, com trajes quase irreconhecíveis. Uma mulher... Por um momento, livrou uma das mãos para afastar da testa a mecha de cabelo que teimava em cair, deixando entrever alguns traços do rosto suave e belo. Contudo, o gesto ficou suspenso no ar. Dessa vez foi um barulho forte, bastante claro, que chamou a sua atenção. E, embora não olhasse para a porta, manteve a cabeça erguida, ouvidos atentos a cada palavra que se dizia lá fora. Eram muitas vozes, de pessoas que estavam bastante próximas dali, falando ao mesmo tempo, numa algaravia excitada. Discutiam, em sua língua, algo indefinido e estranhamente familiar, sobre a punição do homem que tentara matar o rei, jurando livrar a terra amada do seu governo maléfico. Sob a chama de archotes que se moviam de um lado a outro, marcando o aposento com um facho de luz oscilante, da porta à parede oposta, clamavam por justiça, vingança. E então a luz dos archotes distanciou-se da porta, mergulhando outra vez o aposento numa quase escuridão, e os passos e vozes que exalavam a terrível ânsia de sangue sumiram pouco a pouco no silêncio, levando consigo o prisioneiro. Iam levar o criminoso para o cais e amarrá-lo no barco cerimonial já à sua espera. Ele seria a oferenda enviada aos deuses no ritual daquela noite, transformado, com a embarcação, numa pira incandescente, flutuando sobre as águas do mar rumo ao Mundo das Sombras. Mesmo na quietude vazia do aposento, os ecos das palavras ditas, de tudo o que acabara de acontecer, continuaram a reverberar, tornando a atmosfera ali mais densa e angustiante. Ao mesmo tempo, tudo ali soava extraordinariamente irreal, despropositado... E, embora as mãos ágeis voltassem a trabalhar, com surpreendente energia, e fosse impossível ver por completo o rosto da misteriosa figura, toda a sua postura, cada músculo retesado do seu corpo denunciava que tentava a custo reprimir as lágrimas. Ela continuou ali, diligente na tarefa que se impusera, anulando todo o impulso de sair daquela sala, correr para o cais e ver o que se passava, tentar talvez fazer alguma coisa... Até que a chama da vela também se extinguiu. Exausta, ela se levantou devagar, mirando por um momento o produto de seu longo trabalho. A luz mansa da manhã que surgia inundava a mesa, e finalmente ele se tornou visível, real. Uma tapeçaria de parede, finamente bordada, com o desenho de um homem em seu barco, altivo, flutuando sobre a imensidão azul, avistando uma terra fantástica... Mas o que havia ali, naquela tapeçaria, naquela paisagem, naquele rosto masculino... Era sem dúvida o rosto do criminoso lançado ao mar, não em chamas, mas em liberdade, como sempre desejara. E era mais que isso... O súbito reconhecimento me trespassou como um fogo insuportável que tomava até a alma, impelindo-me, sem mais amarras, para fora da sala. Antes, porém, ao passar pela mulher, julguei que seu olhar me encarava, por mais que soubesse que nem ela poderia ver-me. Era impossível, e, no entanto – ou seria impressão? – seu olhar fixou-se em mim. Um olhar impossível de descrever ou esquecer, e que levei comigo quando atravessei aquela porta e a luz da manhã me ofuscou para tudo o mais... Quando a mulher entrou na sala, à procura do marido, encontrou-o numa das poltronas, cabeça inclinada para um lado, os olhos fechados, uma expressão tranqüila no rosto. Mas ainda assim, por algum motivo que não sabia explicar, teve a sensação de que ele não estava só dormindo... Assustada, aproximou-se um pouco e, de repente, sua atenção foi atraída para o objeto que o homem segurava nas mãos. Era uma pequena peça de tapeçaria de parede, algo que o encantara no dia anterior, deixando-o quase perturbado, fazendo-o insistir com a esposa para que o comprassem e decorassem com ele o apartamento recém-alugado. Naquela peça, tão antiga que mal se conseguia precisar a data, estava bordado o desenho de um homem dentro de um barco, seguindo para uma terra exuberante. Só isso... Mas, prestando atenção ao rosto do homem ali desenhado, com tamanha riqueza de detalhes, reconheceu nele o retrato, impossível, de seu marido... Nota do Editor: Juliana Perazollo é jornalista e escritora.
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