Desde a mais tenra idade, uma terrível dúvida aflige meus pensamentos: quem são os pais do Huguinho, do Zézinho e do Luisinho? Pode até parecer uma coisa sem importância para você, mas para mim talvez seja a diferença entre a salvação ou o castigo eterno. Fui criado em um apartamento. Era um apartamento grande se compararmos com as kitnets atuais, mas não deixava de ser um apartamento. E uma das únicas maneiras dos pais manterem seus rebentos razoavelmente calmos num apartamento era chuchando-lhes incontáveis gibis. A TV já existia sim, mas era uma coisa diferente. Não ficava ligada o dia inteiro, como fica hoje. Normalmente era acionada só depois da janta, para que os pais conferissem o jornal e as mães, suas novelas. Durante o dia, as crianças se viravam mesmo era com os gibis. Aqui em Votuporanga, disseram-me, havia sessões de troca em frente ao cinema. Já em Campinas, onde nasci, as crianças apenas colecionavam. Acumulávamos imensas pilhas de gibis, e ai de quem chegasse perto deles. Nosso prazer não se resumia em apenas ler, mas em ter mais gibis que os outros. Como se pode observar, o capitalismo atingia as crianças de grandes centros de maneira um pouco mais traumática. Bem. Sei que, enquanto por aqui as crianças ficavam andando de bicicleta no jardim, em Campinas eu ficava trancado no meu quarto. Lendo gibis. Não posso dizer que foi ruim. Até hoje gosto de histórias em quadrinhos e ainda guardo uma imensa coleção, que minha mulher vive pedindo para eu jogar fora. "Um ninho de baratas", ela diz. O que ela não entende é que foi desse ninho de baratas que tirei minhas primeiras impressões sobre o mundo. Lições, até hoje, não muito bem compreendidas. Uma das maiores dúvidas é aquela, com a qual iniciei a crônica: onde diabos se meteram os pais dos sobrinhos do Pato Donald? São órfãos, os pobres patinhos? E o Tio Patinhas? Se é tio, é irmão da mãe de alguém, não é? Ou do pai. E cadê esses irmãos? E o pai do Pato Donald? Por onde anda? Tem também a Vovó Donalda. É irmã do Tio Patinhas? Ou o quê, então? E se são irmãos, onde estão os pais? Ninguém tem pai nessa história? Porque, você pode dar uma olhada. O Cebolinha. A Mônica. O Cascão. Todos eles têm pai e mãe. Mas os personagens Disney não. Um bando de animais órfãos que vivem numa tremenda promiscuidade. São cachorros andando com ratos e patos. Porquinhos chafurdando num pesadelo incestuoso. Bois, cavalos e, vejam bem, VACAS!!! Sim, vacas, a maioria com suas tetas pendendo sensualmente à vista de todos - e isso tudo muito antes de liberarem o topless. Sei que, se aliarmos essa esculhambação toda do Walt Disney à rígida educação católica que recebi, não se poderia esperar mesmo nada de muito proveitoso. São coisas muito antagônicas: a igreja pregando a importância de uma vida familiar saudável e os quadrinhos nessa geléia geral. Não há cabeça de criança que consiga conciliar essas duas visões de mundo sem entrar em conflito. Bem fazem algumas igrejas que proíbem seus seguidores de lerem histórias em quadrinhos, ouvirem rock’n roll e até mesmo de tomarem Coca-Cola. São coisas do demônio, evidentemente. Só não vê quem não quer.
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